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No stress? ou De como 10 dias são mais do que suficientes para a Família TraPu passar junta, ainda que em Garopaba

29 de junho de 2010

Pouco mais de um ano depois de seu último encontro itinerante, a família TraPu se reuniu novamente, desta vez para os festejos de Réveillon. Agora a trupe, digo, o time, estava desfalcado das presenças de Mamãe Chance Sellers, que ficou no Rio cuidando de sua caçula, Cachorro do Mato, e de Tio Ilustríssimo, que preferiu ver o ano chegar antes e assistiu aos fogos pipocarem na Tailândia.

Para reunir a segregada família, Papai Sabe Tudo alugou uma casa em Garopaba (sim, aquela cidade depois de Florianópolis, das camisas no stress), onde o novo ano seria recebido em companhia de seu filho carioca do Rio, Raspa de Tacho, seu filho carioca de São Paulo, eu, sua filha carioca de Curitiba, Material Girl, o agregado, digo, Cunhado Curitibano, e os rebentos do casal, Afilhado e Espoleta (minha outra irmã, Ternurinha, mais uma vez se escusou de participar da trama).

Imbuído de todo seu espírito aventureiro (e econômico), lá fomos nós – Papai, Raspa e eu, que havia passado a ceia de Natal em companhia de Mamãe Chance Sellers – pela estrada afora, do Rio para a longínqua terra dos desestressados, ao sul do país. Ainda com perus, bacalhaus e rabanadas no bucho, botamos o pé na tábua logo cedo, no dia 25. Pernoitamos em Curitiba, em casa de Material Girl. Enquanto comíamos uma pizza, Material contou da advertência de Ternurinha, que não esquecêssemos de levar nossas focinheiras.

“E por que ela não veio, a Ternurinha?”, quis saber Cunhado Curitibano. “Ela não encontrou uma focinheira do tamanho dela!”, respondeu minha afiada irmã primogênita, em meio a gargalhadas com seu próprio gracejo (acompanhada pelo resto da família, é claro). “Esse fim de ano vai ser divertido, hein?”, comentou comigo Cunhado. “Vai”, respondi.

Lições de vida

Ainda na primeira parte do trajeto, Rio-Curitiba, antevimos o quão proveitoso seria aquele passeio. Uma frutífera troca de conhecimentos já se anunciava, da qual sairíamos indubitavelmente enriquecidos, iniciando um novo ano com novas e importantes informações. Eu, por exemplo, após elogiar a destreza de meu pai ao volante (por deboche?, ou ironia?, ou sarcasmo?, como será explicado a seguir), fiquei sabendo que destreza vem de destro, direito, e que, ao contrário, o sinônimo de esquerdo é sinistro, denotando o preconceito àqueles que se valem da mão esquerda para executar suas funções manuais (sim, meu pai é canhoto, provavelmente por isso ele não seja assim tão destro na direção).

Durante o caminho, tive a satisfação de explicar a Papai Sabe Tudo a diferença entre TOC e transtorno bipolar – segundo ele, tudo doença de quem não tem o que fazer. Já o noventista Raspa de Tacho adquiriu um pouco de conhecimento de música brasileira dos anos 80, ao falarmos a ele sobre a Blitz, cujas músicas embalavam as viagens familiares de minha tenra infância, e que naquela nova jornada, como que por encanto, ressurgia nas rádios por duas vezes, a mesma canção: A dois passos do paraíso (aquela do Arlindo Orlando, um caminhoneiro conhecido da pequena e pacata cidade de Miracema do Norte, que escafedeu-se deixando em prantos sua amada Mariposa Apaixonada de Guadalupe).

E os próximos dias nos reservavam novas e cruciais trocas de saberes. Esclarecendo uma dúvida levantada por Raspa, eu e Papai explicamos, o mais didaticamente possível, ilustrando com exemplos familiares, a diferença entre deboche, ironia e sarcasmo (tema pertinente, com cadeira cativa na família: a irmã de Papai Sabe Tudo, Tia Veríssima, vive lhe passando pitos, dizendo que ele e seus filhos, eu e Material, somos três debochados).

Naqueles ensolarados dias, Papai Sabe Tudo também incorporaria a seu já vasto vocabulário uma nova palavra: larica. Explico. Estávamos todos tomando um belo açaí em um quiosque em Guarda do Embaú, quando minha irmã sugeriu que comêssemos a seguir um doce num estabelecimento chamado Larica, rindo do nome escolhido para o local. Contei que em Trindade também tem um lugar chamado Larica, lembrando que o nome é bem apropriado a balneários como aqueles.

Eu e Material Girl rimos, para curiosidade de nosso pai, que não alcançava a graça daquele papo estranho, mas já previa que boa coisa não podia ser: “O que foi, hein? Do que vocês estão rindo? O que é larica?”, quis saber. “É um nome pitoresco, legal para lugares praianos assim”, tentei despistar, mas Material G. acabou lhe explicando a real acepção do termo.

Complementei explicando que, assim como o Leite Moça acabou popularmente se tornando um genérico para identificar todas as marcas de leite condensado, a larica também expandiu sua significação para qualquer desejo de comer um doce, a qualquer hora, não necessariamente apenas naquela de origem. “Assim, se um dia você ouvir Raspa de Tacho dizendo que está na larica, não se assuste, é uma pura e simples vontade de ingerir açúcar”, exemplifiquei, em um belo e fraternal gesto de livrar a barra de meu irmão surfista de 17 anos de idade, eu que não suporto qualquer tipo de fumaça que deixe fedendo o ar, meu corpo ou meu hálito. Às vezes eu sou um fofo.

A sensatez de Ternurinha

Tamanho ganho de conhecimento não se restringiu apenas ao círculo Pu – Papai Sabe Tudo – Raspa de Tacho, porém. Em Garopaba também tive a oportunidade de ensinar a meu sobrinho caçula, Espoleta, a Lei da Ação e Reação de Newton, com exemplos práticos: quem dá tapa, leva tapa, quem morde, é mordido. Minha irmã, mãe do jovem aprendiz, interpretou mal o intuito didático de tio tão zeloso, e, indignada, citou o manjado “Deus escreve certo por linhas tortas”, referindo-se a minha espontânea incapacidade reprodutora. “Eu diria que a natureza é sábia, porque torta é a sua cabeça”, corrigi.

Assim, aos poucos a recomendação de Ternurinha ia se revelando realmente bastante válida, pena que não tivéssemos lhe dado a devida atenção e ter deixado passar tão indispensável item na mala de uma viagem em família, principalmente uma família cujos irmãos não praticamente se atracavam para disputar quem vai tomar banho primeiro depois da praia há tantos anos, e sentiam falta disso, como veio a acontecer em um daqueles escaldantes derradeiros dias do ano que findava. Felizmente, na falta de nossas focinheiras, Papai Sabe Tudo e Cunhado Curitibano se incumbiram de prevenir o ataque de Material Girl à minha integridade física.

Quarto de princesa

Por outro lado, outro fator desencadeador de confrontos fraternos em férias bastante comum foi por nós desprezado logo de cara: a escolha dos quartos. Eram três, cada um de uma cor. Quando adentrei aquele com a parede cor-de-rosa (com um trio de borboletas de plástico colado, coberto de purpurina), cortinas e tapete de tricô na mesma cor, não tive dúvidas: “é meu”.

“Material Girl e Cunhado Curitibano ficam obviamente no de cama de casal, com Espoleta no colchonete, Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho podem ficar na cama de casal do outro quarto e eu fico neste com Afilhado, de camas de solteiro”, sugeri. Às vezes eu sou muito fofo. Sugestão aceita, prontamente batizei aquele recinto onde se daria meu sono de beleza pelos próximos dias: quarto de princesa.

Não vinde a mim as criancinhas

Estava um dia eu, lindo, inteligente e sossegado em meu quarto de princesa fazendo minha leitura noturna de um livro de crônicas do Woody Allen quando me aparece Espoleta: “Pu!”, anuncia ele sua chegada, abrindo a porta. “Ai, meu Deus”, penso eu, minha alergia a crianças já me fazendo coçar. Ele vem até minha cama, me abraça e me dá um beijo no rosto. “Que bonitinho, ele também sabe beijar, além de bater e morder”, considerei afinal.

Ele então se afasta, “tchau”, apaga a luz e fecha a porta. No escuro, livro na mão, considero o desejo de enviá-lo para o lugar que dá nome ao que leio: Fora de órbita.

Cuidado com a Cuca

Não foi apenas a peleja com minha irmã que fez tremer o chão da pacata Garopaba. A família já havia dito a que veio logo na primeira noite, representada por Raspa de Tacho. Havia, na casa vizinha, um grande e velho golden retriever, o Beethoven, que não chegava a ser magnífico, mas era extremamente bonachão. E todos se afeiçoaram ao bicho, Espoleta ficava chamando-o pelo muro, “Bitôôô! Vem! Bitôôô! Vem!” etc. E todos foram dormir.

À noite escuto gritos. Uma voz que eu não identificava gritava violentamente, parecendo uma briga. “Que vizinhança barraqueira”, pensei, e é claro que tentava discernir alguma palavra de todo aquele palavreado vociferado. Até que consegui identificar a voz de Papai Sabe Tudo em meio a toda aquela gritaria, e ouvi claramente ele dizer o nome de Raspa de Tacho.

Meu irmãozinho caçula em perigo! Pulei da cama já adrenalizado o suficiente para arrancá-lo de dentro da boca de uma cobra gigante ou debaixo do machado de algum serial killer local sobre o qual poderíamos não ter sido alertados. Quando entrei no quarto deles, o menino se estrebuchava na cama, “ah!!!!! Sai! Sai!”, e meu pai o sacudia, em vão, que nada o despertava daquele estado que mais parecia uma possessão, Raspa era praticamente a menina Reagan.

Em seguida assomaram à porta Material e Cunhado, igualmente atônitos. Eis que enfim Raspa desperta de seu sonho demoníaco, “que foi? Quem estava gritando?” (!!!). “Cadê o cachorro?”, perguntou, olhando para os lados. Ficamos então sabendo que o escândalo que acordou toda a vizinhança (no dia seguinte ficaríamos sabendo que os vizinhos estavam para chamar a polícia quando nos escutaram então rindo e deduziram o que se havia passado) tinha sido causado por um pesadelo com a fera Beethoven, o Bonachão, que ficava gemendo abaixo da janela do quarto.

Raspa de Tacho foi devidamente vaiado e cascudeado, e é claro que por isso o pobre foi alvo de nossos tradicionais deboches pelo resto de nossa estada. E eu saí do quarto dele ameaçando: “mais uma dessas e é você quem vai ficar no quarto de princesa!”.

Velha infância

Além da música do Arlindo Orlando, outras lembranças de menino surgiram naqueles dias. Tive um grato reencontro com o tatuí, aquele bichinho branco e simpático que vemos quando a onda termina na areia e volta para o mar, e eles rapidamente vão cavando, fazendo cosquinha nos pés de quem passa por cima, desesperadamente tentando escapar de crianças como eu, 20 anos atrás (quando ainda havia tatuís em Ipanema), e de Espoleta, hoje, que os chamava de “ratatui”.

A guerra de mamonas também foi um dos esportes praticados (embora o que tenha feito mais sucesso tenha sido o moderno enraquetamento elétrico de mosquitos, com uma aparentemente infantil minirraquete de tênis que impiedosamente mata eletrocutados incautos mosquitos que caçamos em sua ronda pelo ar) em família. “Uma de minhas lembranças mais remotas é o Pu tentando enfiar uma mamona na minha boca enquanto eu ainda era pequenininho”, solta de repente Raspa de Tacho.

Como? “Nunca coexistiram eu, você e um pé de mamona!”, me defendi da calúnia. “É, mas eu me lembro”, insistia Raspa na tentativa de me pintar um monstro maior do que sou (imagina, eu tentando enfiar uma mamona goela abaixo de uma indefesa criancinha, eu prefiro simplesmente me manter afastado delas!). “Você sonhou com isso, assim como sonhou que o pobre do Beethoven estava te atacando, seu problemático!”, e o alcancei e tentei enfiar quatro mamonas em sua boca. Até ser obrigado a bater em retirada diante da artilharia pesada que Afilhado, Espoleta e Papai Sabe Tudo formavam sobre mim.

Vacas, cachorros, pinga, uma presepada

Dia 31 de dezembro. A Família TraPu tem a indigesta ideia de realizar um churrasco para a virada de ano. Eu, que venho sendo atormentado em sonho pelas vacas e bois que ingeri ao longo da vida, achei que seria de péssimo agouro comer os bichos justo nos primeiros minutos de um novo ano.

E fiquei no pão de alho e nas linguiças, de frango e suína (sim, a galinha e o porquinho também são bichinhos de Deus, mas vamos por etapas, até porque meus pesadelos são ainda só com os bovinos). E na caipirinha. A caipirinha ficava a meu cargo, não só de beber como de fazer para todos. Eu adoro fazer caipirinhas. É para mim motivo de grande orgulho ver os monstros que crio depois de ingerirem duas ou três doses de minhas caipirinhas. Vê-los revirando os olhos, enrolando a língua, trocando as pernas, subindo em cima da mesa, fazendo algo que jamais fariam em seu estado normal, enfim. Adoro. É um grande orgulho.

Era a hora de viver a experiência em família. Mas, para minha decepção, ninguém revirou os olhos, enrolou a língua, trocou as pernas, subiu em cima da mesa nem nada mais do gênero. Eles são ruins que nem eu, está no sangue. Mas compartilhamos o êxtase familiar. Explico. Na véspera, uma moça que nos vendeu geleias elogiou nossa linda família, que era “um êxtase” nos ver reunidos, que éramos bonitos, unidos e alegres. Pois depois de algumas caipirinhas foi super divertido lembrar disso, nos rendeu boas gargalhadas, um êxtase realmente.

Papai Sabe Tudo, após elucubrar sobre as pernas da “Beth Sangalo”, anunciou que iria dar as gorduras da picanha para a “Isabel”, a boxer da outra casa vizinha, que se chamava Mel. Ciumento, entrei na disputa, formando um bizarro triângulo com meu pai e uma cachorra. Peguei alguns corações de galinha e levei para a dócil cachorrinha: “o meu coração é da Isabel!”, bradava eu (tem coisa mais linda que bêbado?). No dia seguinte atestaríamos que, felizmente, estava tudo bem com Mel. E com Beethoven, que do outro lado também se regalou com nossa orgia carnívora.

Quanto a mim, resoluto em minha decisão de poupar as vaquinhas, lá pela terceira caipirinha já não encarava o assunto com tanta rigidez. “Um pedacinho só não tem problema”, deliberei, enquanto abocanhava com todos os meus dentes um sangrento pedaço de picanha. Fiquei ali parado um tempo, olhando, e minha conclusão foi que mais um pequeno pedaço também seria perdoável. E comi mais um. E fiquei só pelos dois nacos de carne mesmo, depois voltei para o pão com alho. E para a caipirinha, claro.

Hora de dormir. Meu primeiro sonho do novo ano? Eu ia ver a Mel, e ela era uma vaca. E eu a acarinhava, passava a mão no pelo macio e bem tratado de sua cara, com olhos dóceis e inofensivos, e pensava: “por que cuidam tão bem dela, a tratam tão bem, se depois vão matá-la? Por quê?”, e me desconcertava diante do brutal e inevitável destino do pobre bicho, a quem nos apegamos em poucos dias. E o mundo se pareceu cruel por demais para mim.

Expulsos do paraíso

Ao contrário do planejado, que era ficar naquele paradisíaco balneário até domingo, fomos obrigados a voltar pra casa dois dias antes, impelidos pela torrencial chuva que se abateu sobre a cidade, e que parecia que vinha para ficar.

Novamente no carro, fazendo o caminho contrário, eu, Raspa de Tacho e Papai Sabe Tudo compartilhávamos os derradeiros momentos de êxtase familiar. Material Girl e sua família ficariam em Curitiba, eu ficaria em São Paulo, e Papai e Raspa seguiriam para o Rio.

“Sentiremos sua falta”, declarou Papai Sabe Tudo quando comentei sobre as escalas nas cidades. Achei que aquela seria uma boa oportunidade para uma revisão de todo o conhecimento geral acumulado naqueles dias, e indaguei: “isso foi um deboche, uma ironia ou um sarcasmo?”.

Imagem: gooooooogle

Arquivo: janeiro 2009

Plunct Plact Zum

4 de maio de 2010

Nesta quinta-feira peguei um avião, rumo a um merecido feriado prolongado. Tinha marcado meu assento para a janela e ao chegar ao meu lugar, me deparei com uma mãe no corredor e sua filha pequena, de uns cinco anos, no meio. “Argh!”, exclamei em off, minha alergia a crianças já me fazendo coçar. Bem do meu lado, ai de mim! Mas, passado o susto, fui subitamente acometido por uma inexplicável magnanimidade: “você não quer sentar na janela?”, indaguei àquele pequeno ser, quando sua mãe pediu para que ela deixasse “o moço passar”.

Não sei o que me motivou a isso, provavelmente a preguiça de ter que passar pelas duas até alcançar meu assento, ou o medo de, durante a viagem, me sentir encurralado por elas. Ou quem sabe o entusiasmo pelos promissores dias que me esperavam, ou ainda a alegria pelo fato do voo ter atrasado “apenas” uma hora. Vai saber. Mas a família toda (do outro lado do corredor estavam o pai da pimpolha com mais três de seus irmãozinhos, um deles ainda de colo – o quarto viajava em compartimento especial, a barriga da mãe) ficou tão feliz com este simples gesto, “olha, filha, na janela, que legaaallll!!!! Agradece o moço!”, “obrigado!!”, me agradeceu ela num sorriso, que me senti satisfeito com minha boa ação, tão facilmente praticada. Às vezes eu sou um fofo.

Ainda antes da decolagem eu já recebia do céu a confirmação de que havia feito a coisa certa: “mamãe, se Jesus morasse lá onde o avião sobe, a gente ia ver Jesus, né?”, indagou a inocente pequenina, que logo depois, enquanto o avião subia, constatava: “nem parece a luz das casas, parece um tapete todo brilhante cobrindo tudo”, referindo-se às luzes da cidade vista do alto. As crianças também são fofas às vezes.

Tamanho clima de anúncio de amaciante de roupas logo foi cortado pelo anúncio do comandante, que dizia que devido ao caos, digo, tráfego, aéreo, faríamos uma….escala não prevista, em Campinas, para de lá partir sabe-se Deus quando. Viajar de avião neste país é uma aventura repleta de surpresas, acredito ter sido avisada previamente minha pequena companheira de viagem por sua mãe, como forma de incentivá-la.

Mas, como bom brasileiro, logo dei um jeitinho de driblar a adversidade. Descobri três assentos vazios na parte de trás do avião, para onde me dirigi logo após o lanche e me despedir de minhas vizinhas. Coloquei o fone de ouvido, me ajeitei como pude, me encolhendo nos bancos, encostei minha cabecinha no travesseiro e, contagiado pelas vibrações infantis, fiquei imaginando que estava fazendo uma viagem bem longa, noite adentro. Afinal, quanto mais longe se vai, e mais longa for a viagem, mais legal é o lugar a que se chega! Brincando de faz de conta, logo peguei no sono. Daqueles angelicais.

E nem demorou tanto assim. Mal tinha começado a babar quando tive que voltar à posição vertical para a nova (e última) decolagem. Chegando ao destino final (enfim), ao sair do avião estava tão chapado de sono que vi Jesus Cristo na pista, recepcionando a mim e à grande família, de braços abertos, nos saudando: “vinde a mim as criancinhas!”.

Foto: gooooooogle

Arquivo: junho 2007

Que beleza de fim de ano! ou Breves histórias sobre aquela que está nos olhos de quem vê

4 de abril de 2010

Ceia de Natal completa, com direito a peru, rabanada e retorno da prima-da-mãe-distante-há-mais-de-vinte-anos. Mas o destaque aqui vai mesmo para a prima da Mamãe Chance Sellers que mora perto e é sua melhor amiga, a Prima Velhinha. O assunto era algo bastante original em rodas familiares: a mudança fisionômica de seus membros, entre a infância e a vida adulta. Após chegarem a um consenso de que eu fui uma criança linda, Velhinha declarou: “é, mas o Pu mudou muito…”. Não entendi.

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Fila da pesagem de frios em um mercadinho de Ubatuba. Eu e Xará Mãe aguardávamos nossa vez quando um estranho ser de saia longa, camisa abotoada até o limite do sufoco e cabelo amarrado, sem que ninguém lhe solicitasse sua opinião, vira para Xará Mãe e diz, com ar grave: “bolacha de água e sal engorda menos que pão light” (!!!), enquanto punha seu olho gordo em minha amiga e no saudável pão light de iogurte que ela tinha nas mãos.

Minha sogra (como a chamo carinhosamente), do alto de seus 40 e tals anos bem vividos e bem cuidados, com seu físico e charme verafishísticos, encarou incrédula aquela emissária de Edir Macedo e respondeu, blasé: “Ah, é?”. Enfiamos nosso presunto sem capa de gordura e pão light debaixo do braço e demos as costas ao coisa ruim.

Saindo do mercadinho, oramos pela salvação daquela pobre alma. Glória a Deus!

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Barraquinha do coco na praia. Em meio a trocas de carícias, uma menina diz para o namorado: “você é branco leitoso igual à minha avó”. Terá ela feito uma crítica irônica à falta de melanina de seu par ou a feliz constatação de que a pele de seu amado, alva como o leite, a remete às doces lembranças de uma saudosa infância junto de sua querida avozinha?

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Epílogo. Já nos primeiros dias de janeiro, voltei ao Rio para aproveitar os derradeiros momentos de meu recesso. A tempo de Mamãe Chance Sellers me contar que Velhinha, que na ceia natalina me reencontrara pela primeira vez após minha mudança, me fez grandes elogios. Mamãe Chance Sellers os repetiu para mim: “ele está lindo! Está até falando (!!!), São Paulo está fazendo muito bem a ele!”. Acho que estou com medo da Prima Velhinha. Será que é genético? Eu hein…

Foto: gooooooogle

Arquivo: janeiro 2008

Férias quase frustradas

4 de abril de 2010

“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada….”. Bem, teto na verdade tinha. De tijolos aparentes, como, aliás, a casa como um todo. E dos….orifícios existentes neste…rústico teto podiam sair os mais diferentes tipos de bichinhos.

Estou falando da casa que eu, Xará, Xará Mãe, Amandrulhão e alguns surfistas alugamos para passar o fim de ano, em Pouso de Cajaíba, Paraty. Em nossa primeira – e última – noite, saiu do teto-surpresa uma barata. Que à primeira vista pensamos tratar-se de um pterodátilo, dado seu tamanho (ou melhor, envergadura…).

Quando vimos aquilo, dissiparam-se por completo nossas dúvidas de que aquele lugar não era pra gente. Temperatura ambiente de 35º (dentro da casa), um filete de água para tomar banho, dejetos de animal não identificado no quarto (que mais se assemelhava a de um gato, segundo nossas suposições) podíamos até encarar, mas baratas migratórias vindas do Jurassic Park caindo sobre nossas cabeças (ou quem sabe sobrevoando-as) já era demasiado. Eu, por exemplo, tratei de dormir ao relento, na praia: antes passar a noite na companhia de simpáticos caranguejos do que de ameaçadoras baratas.

Quando superássemos aquela provação, refletiríamos que realmente nós devíamos estar atentos aos sinais: um barquinho com capacidade para 11 pessoas que levava 17, com o condutor mandando os afogados (com alguma sorte, náufragos) em potencial irem para aquele lado, para o outro, para a popa, para a proa, para equilibrar o peso da sobrecarregada e frágil embarcação que surfava pelas ondas que inundavam o barco (durante as duas horas de viagem entre o porto de Paraty e Cajaíba); um vira-lata coberto de sarna fazendo xixi na mala de Xará Mãe e Xará filha assim que aportamos e descansamos nossa bagagem na areia; um anão cruzando nosso caminho, correndo de sunga pela praia. Era como os avisos dos desenhos do Scooby Doo, de que algo terrível estava à nossa espreita: “fujam!!!”.

Mas agora que Inês era morta (será que ela caiu do barco e não vimos??), quem iria nos salvar? O super Amandrulhão. Sua família tinha uma pousada em Ubatuba, e após lograrmos contatá-los foi pra lá que fomos. Ficamos em uma praia paradisíaca e praticamente deserta, cujo nome não direi para que assim continue, apenas digo que remete ao rio que chega até ela. Segundo informações locais, na língua indígena esse nome significa “rio que engole homem”. Ainda assim, tanto melhor enfrentar traiçoeiras águas fluviais do que baratas titânicas.

E nosso tão esperado recesso de fim de ano escapou por pouco de virar o filme Férias frustradas de Réveillon. Em meio a ensolarados dias – uma benção em “Ubachuva” – regados a muita água de coco, lulas dorês, camarões empanados e gamão à beira-mar (finalmente encontrei parceira em SP!), em praias surpreendentemente vazias, com direito até a banho de água doce antes de dormir, o Réveillon. Que passamos na praia, após a travessia do rio em plena escuridão, cortada apenas por alguns fachos de luz de lanternas.

No entanto, após a meia-noite, as assombrações estavam à solta na praia. Uma delas veio ter comigo e com Amandita (outro nome pelo qual é conhecida Amandrulhão que, a despeito de seu grandioso porte e sensualidade a la Gabriela Cravo e Canela, tem o coração doce como uma…Amandita!). Nos abordou perguntando se tínhamos cigarro. Percebendo a avidez que o vício lhe causava já nos primeiros minutos de 2008, a pombagira se remendou: “bom, em primeiro lugar feliz ano novo, né gente?”. Nós retribuímos os votos, e ela continuou: “pois é, mais um ano pra gente aturar…”.

“Aturar”??? “Eu não aturo, eu vivo”, respondemos em coro eu e Amandita. “Intensamente”, acrescentamos também juntos, sintonizados que estávamos. “Ah, mas a gente tem que engolir um monte de coisa e blá-blá-blá”, tentava a nuvem negra que se aproximara da gente despejar sobre nós uma chuva de lamúrias, sendo devidamente cortada: “a vida é mais que isso”, rebateu Amandita. “O que você chama de ruim é pra fazer você evoluir”, completei.

Após este bombardeio de segundos de sabedoria, nossa sinistra interlocutora já começava a dar sinais de melhora (embora não aparentasse de todo convencida): “pô, que legal vocês pensarem assim, eu já começo o ano ouvindo coisas positivas. Quem são vocês?”. “Nós somos anjos caídos do céu para espalhar esperança entre a humanidade”, respondi humildemente. “Não, sério, de onde vocês são?”. “Eu sou da constelação de Órion”, disse eu, “e eu venho de Marte”, declarou Amandrulhão, enquanto apontávamos as respectivas estrelas e o planeta no céu, todos ali, acima de nós.

Nesse momento descobrimos que tampouco a dama da lastimável figura estava só. Surgia do mar, aos pulos, seu amigo Saci Pererê, em versão bípede e drag (ainda que usando somente uma sunga – afinal uma autêntica drag queen é mais que apenas glitter, é um estado de espírito). Numa enorme animação, querendo dar abraços molhados em todos. Quando veio pra cima de mim com seus bracinhos levantados, eu pensei rápido e, dos males o menor, bati minhas mãos nas dele(a), gritando “woooowwww!!!!”, me fazendo passar por um de sua espécime. Eu sabia que conseguiria desviar sua atenção da necessidade de um abraço: “WOOOOOOWWWWWWW!!!!!!!!”, ele(a) respondeu entusiasticamente, satisfeito(a) por pensar ter encontrado um semelhante.

Por fim conseguimos nos desvencilhar de Saci, Bad Trip e sua trupe (sim, vinham chegando mais!), e ficamos apenas eu, Amandrulhão, Xará e sua mãe contemplando as estrelas. Mentalizando coisas boas para o ano que chegava, que definitivamente não iremos apenas “aturar”.

E começar um ano com bons amigos, no meio de um rio sob as estrelas só pode ser um excelente presságio. Ainda que o rio em questão de tempos em tempos engula homens.

Foto: minha, de Xará, de minha sogra ou de Amandita, não me lembro, em nossa chegada a Cajaíba após muitas sacudidas

Arquivo: janeiro 2008

Batizado na Família TraPu ou Pequeno Mr. Sunshine

2 de março de 2010

Era uma vez uma família que iria se reunir para o batizado do mais novo de seus membros. Nada mais natural, se não fosse pelo fato de que tal encontro se daria a algumas centenas de quilômetros (para alguns deles mais, para outros menos) de onde vivem, resultando em uma caravana rumo ao local em questão. Tal episódio tampouco mereceria notoriedade, se a parentela em questão não se tratasse da Família TraPu. E com o agravante deste encontro durar quatro dias.

Os personagens desta tragicomé…digo, epopeia familiar, eram:

Este que escreve

Mamãe Chance Sellers (qualquer semelhança de seu nome com o personagem Chance, de Peter Sellers em Muito Além do Jardim, é mera homenagem)

Papai Sabe Tudo

Material Girl (irmã mais velha de Pu)

Cunhado Curitibano (marido de Material Girl)

Afilhado (de Pu, primogênito de Material Girl e Cunhado Curitibano)

Espoleta (o batizando, irmão caçula de Afilhado)

Tio Ilustríssimo (irmão de Papai Sabe Tudo e membro real da família plebeia)

Raspa de Tacho (filho temporão – não, nenhuma relação com o ministro da Saúde – de Papai Sabe Tudo, fruto de seu segundo enlace matrimonial, com Madrasta)

O contexto em que se encontravam estas pessoas era o seguinte:

Mamãe Chance Sellers estava enfurecida com seu ex-marido Papai Sabe Tudo, por este ter-lhe negado carona em seu carro no trajeto de mais de 800 km que separa o Rio de Janeiro de Curitiba e tê-la feito cumprir sozinha, e de ônibus, esta rota que leva meio dia de viagem para ser completada. Motivo: medo (infundado, supõe-se…) de uma censura – ou quem sabe uma retaliação – de Madrasta, que teve de ficar no Rio por motivos de força maior.

Cheguei a intervir neste caso, ralhando com Papai Sabe Tudo ao telefone quando este me contou do “absurdo” do pedido, se achando cheio de razão por ter dito não e considerando tudo muito engraçado, o debochado (Mamãe Chance Sellers contou que dias depois Papai havia lhe telefonado querendo falar com ela – arrependido e disposto a se redimir, supõe-se – mas que ela, orgulhosa, não quis atender, decidida a ir sola mesmo).

Material Girl vivia ainda o luto por seu primogênito de quatro patas, que partira para o céu dos cachorrinhos dias antes. Após os festejos do feriado, ela também iria para o Rio, com o propósito de lançar os caninos restos mortais ao mar (tal e qual Carlota Joaquina, ela não quer que as cinzas de seu bichinho se misture ao pó de Curitiba, cidade que ela renega e não vê a hora de deixar – após bater bem os sapatos).

Tio Ilustríssimo havia recém-terminado com seu par. Já Ternurinha, a irmã do meio de Pu e Material Girl, não tomou parte nesta jornada por temer pela saúde de Julie Joy, manquetola e cegueta, caso fosse deixada em um canil (a cachorrinha, não minha irmã!) durante o período.

E foi assim, em meio a tais inquietações e anseios, que a sui generis Família TraPu teve que superar suas divergências e conviver pacificamente em prol de um bem comum, estrelando este road movie da vida como ela é, que fez de Espoleta, a figura central desta história, uma versão tupiniquim da pequena Miss Sunshine.

A seguir, as melhores cenas desta insólita saga:

A chegada

Parti de São Paulo na noite de quarta, chegando à capital paranaense na manhã seguinte. Fui para a casa de Material Girl, que hospedava Mamãe Chance Sellers, que, assim como Papai Sabe Tudo, havia chegado na véspera – cada qual em seu meio de transporte.

Após as saudações iniciais, fiquei sabendo o motivo da longa espera por uma resposta ao interfone: embora Mamãe Chance Sellers o escutasse tocar insistentemente, não fazia nada a respeito por acreditar que se tratasse do despertador que acordava o restante da casa. “Cheguei na sala e ela estava esparramada no sofá, e o interfone tocando”, entregou Material G.

Minutos depois, chegaram Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho. Como o local de minha hospedagem ainda não havia sido definido, Papai me perguntou se eu ficaria com eles no hotel, ao mesmo tempo em que Material Girl me convidava a ficar em sua casa. Optei pelo ambiente família, ficaria com meus sobrinhos, enfrentando minha alergia a crianças.

“Mas sua mãe já não está perturbando muito, Material G.?”, perguntou meu debochado progenitor, com o único propósito de provocar sua ex-mulher logo pela manhã. Quando ela, indignada, já esboçava seu protesto, eu me antecipei e disse a Papai: “Mamãe Chance Sellers mandou você #!*&#!*”, sendo censurado por aquela a quem eu defendia: “Ai, Pu, que horror!”.

Era a hora da distribuição dos presentes que eu trouxera de minhas férias no nordeste – leia-se camisetas de Porto de Galinhas. Dei a Papai Sabe Tudo uma com a estampa da bandeira símbolo do mergulho, deixando-o feliz com a lembrança e com a primeira oportunidade do dia, e da viagem, de demonstrar toda a sua sapiência: “Vocês sabem o que significa este símbolo?”, nos desafiou. “Sabemos”, respondemos em coro, e lhe tiramos o gostinho de nos ensinar mais essa.

A esta altura, Cunhado Curitibano já havia despertado, e tomamos todos juntos o café da manhã. Foi em meio a torradas e queijos que Material Girl ofereceu à Mamãe Chance Sellers um dos forninhos elétricos que Cunhado tinha ganhado como brinde em sua firma – havia umas dez caixas deles empilhadas no quarto de empregada – por apenas R$ 100,00, preço de filha para mãe (“nas Lojas Americanas está quase R$ 200,00!”) que, no entanto, não se interessou pela promoção. Entre um gole de leite e outro, fiquei sabendo que Mamãe Chance Sellers havia sido uma das consumidoras do genérico de Tropa de elite, mas que ao chegar em casa, se viu diante de um show de Bruno e Marrone. E que ela estava impressionada como Curitiba parecia com San Francisco. “Mas você conhece San Francisco?”. “Não”. Mamãe Chance Sellers é como eu, vê muito filme (“she likes to watch”). E Papai Sabe Tudo ainda encontrou espaço para tecer seus comentários a respeito da embalagem do french vanilla que Material G. usa no café: “parece sapólio!” – já a criatividade de Papai, eu não consigo superar…

Na Ilha do Mel

Estômago forrado, era hora de desbravarmos a Ilha do Mel. Desta primeira etapa do roteiro family hollyday não participariam meu cunhado e meus sobrinhos (e Tio Ilustríssimo, que estava a caminho), que iriam para o trabalho e para a escola, afinal ainda era véspera do feriado. Assim seguiram para o litoral apenas aqueles que puderam prolongar a folga e aquelas que vivem férias eternas.

(No carro, a queda da ficha: eu achava que não viveria mais para ver aquele dia, a Família TraPu reunida novamente, e viajando junta! Só faltava Ternurinha. E havia Raspa de Tacho de quebra. Bom, mas tudo bem, vai…)

Já chegando ao porto, surgia a primeira piada interna do feriado: quando nos julgávamos perdidos, devido à infindável estrada em linha reta que levava aos barcos, exclamei ôôôxe…, explicando a serventia da interjeição no nordeste, empregada sempre que se fica impressionado com algo, ou quando simplesmente não se sabe de nada a respeito. Material G. contou então que Cunhado Curitibano vem ultimamente utilizando o aff….(corruptela de Ave Maria, que de um Ave passou para um mero sopro, afffff….). Ela logo explicou: “ele pegou essa mania do chefe dele”. Cunhado Curitibano é um ótimo agrega….digo, cunhado, mas tem esta peculiaridade: ele tem algo do Zelig, aquele personagem do Woody Allen, que se torna igual à pessoa de que se aproxima. Afff….

Na saída do barco, tentei quebrar o gelo entre Mamãe Chance Sellers e Papai Sabe Tudo, fingindo que iria dar a mão para ajudá-la, mas deixando Papai fazer isso. Após uma prainha, era hora de encher a barriga em família novamente. E também para surgir a segunda piada interna: no barzinho da praia, para tudo o que perguntávamos ao garçom obtínhamos a mesma resposta: “como é o x-tudo de vocês?”. “Bem, isso depende da região. Cada uma faz de um jeito, aqui é assim, assim, assim…”. “E o x-salada?”. “Em cada região é de um jeito. Aqui nós fazemos tal, tal e tal…”. Após experimentarmos a culinária sanduichística típica da região, voltamos para Curitiba. Era hora de rever as criancinhas…

Espoleta

A despeito de minha pedoalergia, em relação a meus sobrinhos tenho uma resistência maior, e consigo encarar bem até quatro dias consecutivos de convívio, sem antibióticos. Afilhado já está com dez anos, e não causa mais transtornos (pelo menos para mim), ocupado que está com seu MP3. Quanto a Espoleta, aquela miniatura de gente de apenas três aninhos de idade…

O mais novo membro da família TraPu é coisinha linda de Deus. A última vez que eu o vira ele ainda engatinhava e emitia grunhidos. Hoje ele já anda, corre, joga bola pela casa, grita com toda a força de seus pequenos pulmões, cospe, morde e faz “fonfon” (brincadeira que consiste em apertar, até o limite da resistência humana, a bochecha de suas pobres vítimas – para o caso de Papai Sabe Tudo ele fez uma pequena adaptação, que é tentar arrancar sua barba da cara). Mais fofo que o tio.

Nos trilhos para Morretes

O programa de sexta-feira foi andar de trenzinho. Não, não era um brinquedinho de Espoleta, mas sim o trem que desce a Serra do Mar até Morretes, cidade histórica do litoral paranaense. Na partida, o guia pergunta ao Tio Ilustríssimo, que estava sozinho em um banco: “onde está seu companheiro?”, referindo-se ao espaço vago ao seu lado. “Eu não tenho companheiro, moço!”, exclamou, virando-se a seguir para nós, zombeteiro: “era só o que faltava!”.

Durante o pitoresco trajeto, Mamãe Chance Sellers pôde mais uma vez dar asas à imaginação. Sobre a balbúrdia que a turma da farofa criava na parte de trás do vagão cada vez que o trem entrava em um túnel, Mamãe considerou: “parece aqueles trens cheios de torcedores que vão para o Maracanã…”. “Você já esteve em um trem para o Maracanã?”. “Não, mas deve ser assim” (se aventurando por muito além do Jardim de Alah, Mamãe Chance Sellers estava descobrindo um mundo todo novo).

Carteado

À noite retomamos uma milenar tradição de família, o biriba (ou buraco, para os íntimos). Jogaríamos eu e Ilustríssimo contra Material G. e Cunhado. Antes de começarmos, Ilustríssimo, para nossa surpresa, mostrou-se contrariado porque jogaríamos valendo apenas trinca de ases, forma que toda a família sempre jogou, desde os mais remotos tempos.

Papai Sabe Tudo, que participaria da partida como observador (outro costume familiar acerca da jogatina, segundo o qual para cada partida há sempre pelo menos um espectador, geralmente emitindo palpites), logo esclareceu o irmão: “o buraco valendo apenas trinca de ases ou trinca de qualquer carta varia de acordo com a região”.

Após uma emocionante partida, em que a ala cor-de-rosa da família mostrou sua supremacia, Papai Sabe Tudo, já no hall do elevador, pergunta a Espoleta: “quer ir com o vovô?”, oferecendo-lhe o colo. “Péta (aperta, em espoletês)! Tchau!”, ele responde, apontando o botão do elevador e acenando em seguida.

No tailandês

Curitiba guarda uma boa, ou melhor, deliciosa, semelhança com São Paulo: comida. Não, não me refiro à atração turístico-gastronômica – que, no entanto, só tem fama, e a comida que é bom não tem nada de especial, sendo válido ir uma vez apenas para conhecer e poder dizer depois – que é o bairro de restaurantes Santa Felicidade (sendo o engodo culinário equivalente de São Paulo o Famiglia Mancini). Refiro-me a lugares como o Barolo, onde jantamos em minha primeira noite um conchiglione recheado de camarão com molho de queijo e camarão de comer exclamando mamma mia!…

No sábado, após um dia de passeio pelo Parque Estadual de Vila Velha, foi a vez de experimentarmos a comida oriental local. Fomos ao Asian Spice, um tailandês/mongol que faz parte de um, como irei dizer, bem-bolado de mais dois outros restaurantes contíguos, que se interligam por dentro e que servem comida indiana e japonesa. De comer meditando, mas a grande atração da noite foi nosso vizinho de mesa.

Quando chegamos à mesa que havíamos reservado, Papai Sabe Tudo notou que ela ficava bem debaixo do ar-condicionado, e então, num lapso, fez a seguinte idiótica pergunta: “será que esse ar desce para baixo ou para os lados?”. “Desce pra cima! HEHEHEHEHEHEHE!!!!!!”, respondeu, numa risada que era um misto do Rabugento com a menina Reagan (de O exorcista), a figura sentada à mesa ao lado.

Tchutcho (susto, em espoletês)! Nos sentamos, o ar-condicionado não jogava o ar para baixo, como Papai Sabe Tudo quis dizer. E eis que Reagan Rabugento desatou a conversar com ele. Puxou papo falando do restaurante, que era a primeira vez que jantava lá e que estava gostando muito, isso porque era “mais viajado que leão de circo” (!!!), e tal. Papai tem disso, as crianças e os bêbados o adoram.

Lá pelas tantas nosso sinistro vizinho desce, deixando sua acompanhante sozinha por um tempo. Até que finalmente ele volta, rindo (“HEHEHEHEHEHE!!!!!!!!!!!!”) porque ela havia ligado pra ele chamando-o para voltar à mesa: “eu estava conversando com os indianos!”, ele se justificou. “Você sai e me deixa sozinha! Tive que te ligar!”, retrucou ela, de pilequinho.

Quando eles se levantaram para ir embora, o doido disse pra doida: “dá tchau ali pros nossos amigos!”. E a dupla dinâmica acenou efusivamente para outro casal de uma mesa do outro lado do restaurante, que havia chegado há pouco e com quem em momento algum eles haviam interagido (os pobres, discretíssimos e elegantes, olharam sem entender lhunfas)! Quando passaram por nossa mesa, para despedirem-se de nós, a namorada de Reagan Rabugento nos desejou felicidades e um “batizado lindo” (pelo visto Papai narrou a eles as páginas de nossas vidas), que essa era “uma ocasião muito feliz”! Como diz minha amiga Mary Black, tem coisa mais linda que bêbado?

Na hora de pagar a conta, quando Papai Sabe Tudo queria saber que parte lhe cabia, veio a pureza da resposta das crianças: “ué, mas o Tio Ilustríssimo disse ontem que pagaria o de todo mundo”, bem lembrou meu bem treinado Afilhado.

O batizado

Domingo. Era chegado enfim o dia da razão de estarmos todos longe de casa, ali reunidos. O dia a partir do qual Espoleta não cairia em tentação, não pecaria, seguiria os mandamentos do Senhor, enfim, se tornaria um santo. Por outro lado, enquanto a inocente criancinha era iniciada na hipocri….digo, fé católica, seu avô não demonstrava nenhum temor a Deus: não tirava os olhos dos peitos siliconados de Turca Boa, madrinha de Espoleta.

Saímos da igreja para o brunch de confraternização no Coeur Douce, que foi uma verdadeira orgia gastronômica, onde tive a oportunidade de praticar, com louvor, um dos três de meus pecados capitais favoritos: a gula.

Epílogo

Após quatro dias em que anos a fio foram passados a limpo, por meio de recordações e memórias trazidas à tona em nostálgicas conversas, tendo o futuro também lugar garantido nas discussões, o catártico feriadão familiar chegava ao fim, e a família TraPu começava a se dispersar.

Eu era o primeiro a partir, em uma chuvosa noite de domingo. Tio Ilustríssimo pegaria o primeiro voo do dia seguinte. Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho colocariam o pé na estrada logo cedo, levando de carona Material Girl e a urna funerária contendo as cinzas de meu sobrinho primogênito canino para serem jogadas ao mar de Ipanema. Mamãe Chance Sellers passaria o dia seguinte em Curitiba, à espera do horário do ônibus, que só sairia à noite. Por que Material G., que se hospedaria em casa de sua mãe no Rio, não faria a gentileza de ir com ela fazendo-lhe companhia? “Você paga a passagem?”, responde ela com outra pergunta, sem o menor pudor.

Durante a derradeira partida de buraco, o pandemônio era geral. Tio Ilustríssimo chegou a subornar Afilhado com uma nota de R$ 50,00 para que ele tomasse conta de seu irmão mais novo (leia-se mantê-lo longe da mesa de jogo). Eu já imaginava como seria um encontro entre Espoleta e Xavier, o cão mais inteligente do mundo, visualizando um confronto do tipo Alien x Predador: quem cansaria primeiro o outro? Qual pilha acabaria primeiro? Foi quando lembrei, num suspiro, que Xavier, o cão mais hiperativo do mundo, tem a vantagem de ao menos ser silencioso…

E era com aperto no coração que me lembrava também de que aquele era o último dia de minhas tão almejadas férias. Depois desses quatro dias, eu precisava de pelo menos uma semana a mais. Afff…..

No entanto, quando Mamãe Chance Sellers, Material Girl, Afilhado e Espoleta foram me levar ao elevador, e sua porta fechou como uma cortina a cena dos quatro acenando tchau (praticamente os Teletubbies, só faltava o figurino), minha garganta deu um nó.

Às vezes eu sou um fofo.

Foto: goooooogle

Arquivo: outubro 2007