Pouco mais de um ano depois de seu último encontro itinerante, a família TraPu se reuniu novamente, desta vez para os festejos de Réveillon. Agora a trupe, digo, o time, estava desfalcado das presenças de Mamãe Chance Sellers, que ficou no Rio cuidando de sua caçula, Cachorro do Mato, e de Tio Ilustríssimo, que preferiu ver o ano chegar antes e assistiu aos fogos pipocarem na Tailândia.
Para reunir a segregada família, Papai Sabe Tudo alugou uma casa em Garopaba (sim, aquela cidade depois de Florianópolis, das camisas no stress), onde o novo ano seria recebido em companhia de seu filho carioca do Rio, Raspa de Tacho, seu filho carioca de São Paulo, eu, sua filha carioca de Curitiba, Material Girl, o agregado, digo, Cunhado Curitibano, e os rebentos do casal, Afilhado e Espoleta (minha outra irmã, Ternurinha, mais uma vez se escusou de participar da trama).
Imbuído de todo seu espírito aventureiro (e econômico), lá fomos nós – Papai, Raspa e eu, que havia passado a ceia de Natal em companhia de Mamãe Chance Sellers – pela estrada afora, do Rio para a longínqua terra dos desestressados, ao sul do país. Ainda com perus, bacalhaus e rabanadas no bucho, botamos o pé na tábua logo cedo, no dia 25. Pernoitamos em Curitiba, em casa de Material Girl. Enquanto comíamos uma pizza, Material contou da advertência de Ternurinha, que não esquecêssemos de levar nossas focinheiras.
“E por que ela não veio, a Ternurinha?”, quis saber Cunhado Curitibano. “Ela não encontrou uma focinheira do tamanho dela!”, respondeu minha afiada irmã primogênita, em meio a gargalhadas com seu próprio gracejo (acompanhada pelo resto da família, é claro). “Esse fim de ano vai ser divertido, hein?”, comentou comigo Cunhado. “Vai”, respondi.
Lições de vida
Ainda na primeira parte do trajeto, Rio-Curitiba, antevimos o quão proveitoso seria aquele passeio. Uma frutífera troca de conhecimentos já se anunciava, da qual sairíamos indubitavelmente enriquecidos, iniciando um novo ano com novas e importantes informações. Eu, por exemplo, após elogiar a destreza de meu pai ao volante (por deboche?, ou ironia?, ou sarcasmo?, como será explicado a seguir), fiquei sabendo que destreza vem de destro, direito, e que, ao contrário, o sinônimo de esquerdo é sinistro, denotando o preconceito àqueles que se valem da mão esquerda para executar suas funções manuais (sim, meu pai é canhoto, provavelmente por isso ele não seja assim tão destro na direção).
Durante o caminho, tive a satisfação de explicar a Papai Sabe Tudo a diferença entre TOC e transtorno bipolar – segundo ele, tudo doença de quem não tem o que fazer. Já o noventista Raspa de Tacho adquiriu um pouco de conhecimento de música brasileira dos anos 80, ao falarmos a ele sobre a Blitz, cujas músicas embalavam as viagens familiares de minha tenra infância, e que naquela nova jornada, como que por encanto, ressurgia nas rádios por duas vezes, a mesma canção: A dois passos do paraíso (aquela do Arlindo Orlando, um caminhoneiro conhecido da pequena e pacata cidade de Miracema do Norte, que escafedeu-se deixando em prantos sua amada Mariposa Apaixonada de Guadalupe).
E os próximos dias nos reservavam novas e cruciais trocas de saberes. Esclarecendo uma dúvida levantada por Raspa, eu e Papai explicamos, o mais didaticamente possível, ilustrando com exemplos familiares, a diferença entre deboche, ironia e sarcasmo (tema pertinente, com cadeira cativa na família: a irmã de Papai Sabe Tudo, Tia Veríssima, vive lhe passando pitos, dizendo que ele e seus filhos, eu e Material, somos três debochados).
Naqueles ensolarados dias, Papai Sabe Tudo também incorporaria a seu já vasto vocabulário uma nova palavra: larica. Explico. Estávamos todos tomando um belo açaí em um quiosque em Guarda do Embaú, quando minha irmã sugeriu que comêssemos a seguir um doce num estabelecimento chamado Larica, rindo do nome escolhido para o local. Contei que em Trindade também tem um lugar chamado Larica, lembrando que o nome é bem apropriado a balneários como aqueles.
Eu e Material Girl rimos, para curiosidade de nosso pai, que não alcançava a graça daquele papo estranho, mas já previa que boa coisa não podia ser: “O que foi, hein? Do que vocês estão rindo? O que é larica?”, quis saber. “É um nome pitoresco, legal para lugares praianos assim”, tentei despistar, mas Material G. acabou lhe explicando a real acepção do termo.
Complementei explicando que, assim como o Leite Moça acabou popularmente se tornando um genérico para identificar todas as marcas de leite condensado, a larica também expandiu sua significação para qualquer desejo de comer um doce, a qualquer hora, não necessariamente apenas naquela de origem. “Assim, se um dia você ouvir Raspa de Tacho dizendo que está na larica, não se assuste, é uma pura e simples vontade de ingerir açúcar”, exemplifiquei, em um belo e fraternal gesto de livrar a barra de meu irmão surfista de 17 anos de idade, eu que não suporto qualquer tipo de fumaça que deixe fedendo o ar, meu corpo ou meu hálito. Às vezes eu sou um fofo.
A sensatez de Ternurinha
Tamanho ganho de conhecimento não se restringiu apenas ao círculo Pu – Papai Sabe Tudo – Raspa de Tacho, porém. Em Garopaba também tive a oportunidade de ensinar a meu sobrinho caçula, Espoleta, a Lei da Ação e Reação de Newton, com exemplos práticos: quem dá tapa, leva tapa, quem morde, é mordido. Minha irmã, mãe do jovem aprendiz, interpretou mal o intuito didático de tio tão zeloso, e, indignada, citou o manjado “Deus escreve certo por linhas tortas”, referindo-se a minha espontânea incapacidade reprodutora. “Eu diria que a natureza é sábia, porque torta é a sua cabeça”, corrigi.
Assim, aos poucos a recomendação de Ternurinha ia se revelando realmente bastante válida, pena que não tivéssemos lhe dado a devida atenção e ter deixado passar tão indispensável item na mala de uma viagem em família, principalmente uma família cujos irmãos não praticamente se atracavam para disputar quem vai tomar banho primeiro depois da praia há tantos anos, e sentiam falta disso, como veio a acontecer em um daqueles escaldantes derradeiros dias do ano que findava. Felizmente, na falta de nossas focinheiras, Papai Sabe Tudo e Cunhado Curitibano se incumbiram de prevenir o ataque de Material Girl à minha integridade física.
Quarto de princesa
Por outro lado, outro fator desencadeador de confrontos fraternos em férias bastante comum foi por nós desprezado logo de cara: a escolha dos quartos. Eram três, cada um de uma cor. Quando adentrei aquele com a parede cor-de-rosa (com um trio de borboletas de plástico colado, coberto de purpurina), cortinas e tapete de tricô na mesma cor, não tive dúvidas: “é meu”.
“Material Girl e Cunhado Curitibano ficam obviamente no de cama de casal, com Espoleta no colchonete, Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho podem ficar na cama de casal do outro quarto e eu fico neste com Afilhado, de camas de solteiro”, sugeri. Às vezes eu sou muito fofo. Sugestão aceita, prontamente batizei aquele recinto onde se daria meu sono de beleza pelos próximos dias: quarto de princesa.
Não vinde a mim as criancinhas
Estava um dia eu, lindo, inteligente e sossegado em meu quarto de princesa fazendo minha leitura noturna de um livro de crônicas do Woody Allen quando me aparece Espoleta: “Pu!”, anuncia ele sua chegada, abrindo a porta. “Ai, meu Deus”, penso eu, minha alergia a crianças já me fazendo coçar. Ele vem até minha cama, me abraça e me dá um beijo no rosto. “Que bonitinho, ele também sabe beijar, além de bater e morder”, considerei afinal.
Ele então se afasta, “tchau”, apaga a luz e fecha a porta. No escuro, livro na mão, considero o desejo de enviá-lo para o lugar que dá nome ao que leio: Fora de órbita.
Cuidado com a Cuca
Não foi apenas a peleja com minha irmã que fez tremer o chão da pacata Garopaba. A família já havia dito a que veio logo na primeira noite, representada por Raspa de Tacho. Havia, na casa vizinha, um grande e velho golden retriever, o Beethoven, que não chegava a ser magnífico, mas era extremamente bonachão. E todos se afeiçoaram ao bicho, Espoleta ficava chamando-o pelo muro, “Bitôôô! Vem! Bitôôô! Vem!” etc. E todos foram dormir.
À noite escuto gritos. Uma voz que eu não identificava gritava violentamente, parecendo uma briga. “Que vizinhança barraqueira”, pensei, e é claro que tentava discernir alguma palavra de todo aquele palavreado vociferado. Até que consegui identificar a voz de Papai Sabe Tudo em meio a toda aquela gritaria, e ouvi claramente ele dizer o nome de Raspa de Tacho.
Meu irmãozinho caçula em perigo! Pulei da cama já adrenalizado o suficiente para arrancá-lo de dentro da boca de uma cobra gigante ou debaixo do machado de algum serial killer local sobre o qual poderíamos não ter sido alertados. Quando entrei no quarto deles, o menino se estrebuchava na cama, “ah!!!!! Sai! Sai!”, e meu pai o sacudia, em vão, que nada o despertava daquele estado que mais parecia uma possessão, Raspa era praticamente a menina Reagan.
Em seguida assomaram à porta Material e Cunhado, igualmente atônitos. Eis que enfim Raspa desperta de seu sonho demoníaco, “que foi? Quem estava gritando?” (!!!). “Cadê o cachorro?”, perguntou, olhando para os lados. Ficamos então sabendo que o escândalo que acordou toda a vizinhança (no dia seguinte ficaríamos sabendo que os vizinhos estavam para chamar a polícia quando nos escutaram então rindo e deduziram o que se havia passado) tinha sido causado por um pesadelo com a fera Beethoven, o Bonachão, que ficava gemendo abaixo da janela do quarto.
Raspa de Tacho foi devidamente vaiado e cascudeado, e é claro que por isso o pobre foi alvo de nossos tradicionais deboches pelo resto de nossa estada. E eu saí do quarto dele ameaçando: “mais uma dessas e é você quem vai ficar no quarto de princesa!”.
Velha infância
Além da música do Arlindo Orlando, outras lembranças de menino surgiram naqueles dias. Tive um grato reencontro com o tatuí, aquele bichinho branco e simpático que vemos quando a onda termina na areia e volta para o mar, e eles rapidamente vão cavando, fazendo cosquinha nos pés de quem passa por cima, desesperadamente tentando escapar de crianças como eu, 20 anos atrás (quando ainda havia tatuís em Ipanema), e de Espoleta, hoje, que os chamava de “ratatui”.
A guerra de mamonas também foi um dos esportes praticados (embora o que tenha feito mais sucesso tenha sido o moderno enraquetamento elétrico de mosquitos, com uma aparentemente infantil minirraquete de tênis que impiedosamente mata eletrocutados incautos mosquitos que caçamos em sua ronda pelo ar) em família. “Uma de minhas lembranças mais remotas é o Pu tentando enfiar uma mamona na minha boca enquanto eu ainda era pequenininho”, solta de repente Raspa de Tacho.
Como? “Nunca coexistiram eu, você e um pé de mamona!”, me defendi da calúnia. “É, mas eu me lembro”, insistia Raspa na tentativa de me pintar um monstro maior do que sou (imagina, eu tentando enfiar uma mamona goela abaixo de uma indefesa criancinha, eu prefiro simplesmente me manter afastado delas!). “Você sonhou com isso, assim como sonhou que o pobre do Beethoven estava te atacando, seu problemático!”, e o alcancei e tentei enfiar quatro mamonas em sua boca. Até ser obrigado a bater em retirada diante da artilharia pesada que Afilhado, Espoleta e Papai Sabe Tudo formavam sobre mim.
Vacas, cachorros, pinga, uma presepada
Dia 31 de dezembro. A Família TraPu tem a indigesta ideia de realizar um churrasco para a virada de ano. Eu, que venho sendo atormentado em sonho pelas vacas e bois que ingeri ao longo da vida, achei que seria de péssimo agouro comer os bichos justo nos primeiros minutos de um novo ano.
E fiquei no pão de alho e nas linguiças, de frango e suína (sim, a galinha e o porquinho também são bichinhos de Deus, mas vamos por etapas, até porque meus pesadelos são ainda só com os bovinos). E na caipirinha. A caipirinha ficava a meu cargo, não só de beber como de fazer para todos. Eu adoro fazer caipirinhas. É para mim motivo de grande orgulho ver os monstros que crio depois de ingerirem duas ou três doses de minhas caipirinhas. Vê-los revirando os olhos, enrolando a língua, trocando as pernas, subindo em cima da mesa, fazendo algo que jamais fariam em seu estado normal, enfim. Adoro. É um grande orgulho.
Era a hora de viver a experiência em família. Mas, para minha decepção, ninguém revirou os olhos, enrolou a língua, trocou as pernas, subiu em cima da mesa nem nada mais do gênero. Eles são ruins que nem eu, está no sangue. Mas compartilhamos o êxtase familiar. Explico. Na véspera, uma moça que nos vendeu geleias elogiou nossa linda família, que era “um êxtase” nos ver reunidos, que éramos bonitos, unidos e alegres. Pois depois de algumas caipirinhas foi super divertido lembrar disso, nos rendeu boas gargalhadas, um êxtase realmente.
Papai Sabe Tudo, após elucubrar sobre as pernas da “Beth Sangalo”, anunciou que iria dar as gorduras da picanha para a “Isabel”, a boxer da outra casa vizinha, que se chamava Mel. Ciumento, entrei na disputa, formando um bizarro triângulo com meu pai e uma cachorra. Peguei alguns corações de galinha e levei para a dócil cachorrinha: “o meu coração é da Isabel!”, bradava eu (tem coisa mais linda que bêbado?). No dia seguinte atestaríamos que, felizmente, estava tudo bem com Mel. E com Beethoven, que do outro lado também se regalou com nossa orgia carnívora.
Quanto a mim, resoluto em minha decisão de poupar as vaquinhas, lá pela terceira caipirinha já não encarava o assunto com tanta rigidez. “Um pedacinho só não tem problema”, deliberei, enquanto abocanhava com todos os meus dentes um sangrento pedaço de picanha. Fiquei ali parado um tempo, olhando, e minha conclusão foi que mais um pequeno pedaço também seria perdoável. E comi mais um. E fiquei só pelos dois nacos de carne mesmo, depois voltei para o pão com alho. E para a caipirinha, claro.
Hora de dormir. Meu primeiro sonho do novo ano? Eu ia ver a Mel, e ela era uma vaca. E eu a acarinhava, passava a mão no pelo macio e bem tratado de sua cara, com olhos dóceis e inofensivos, e pensava: “por que cuidam tão bem dela, a tratam tão bem, se depois vão matá-la? Por quê?”, e me desconcertava diante do brutal e inevitável destino do pobre bicho, a quem nos apegamos em poucos dias. E o mundo se pareceu cruel por demais para mim.
Expulsos do paraíso
Ao contrário do planejado, que era ficar naquele paradisíaco balneário até domingo, fomos obrigados a voltar pra casa dois dias antes, impelidos pela torrencial chuva que se abateu sobre a cidade, e que parecia que vinha para ficar.
Novamente no carro, fazendo o caminho contrário, eu, Raspa de Tacho e Papai Sabe Tudo compartilhávamos os derradeiros momentos de êxtase familiar. Material Girl e sua família ficariam em Curitiba, eu ficaria em São Paulo, e Papai e Raspa seguiriam para o Rio.
“Sentiremos sua falta”, declarou Papai Sabe Tudo quando comentei sobre as escalas nas cidades. Achei que aquela seria uma boa oportunidade para uma revisão de todo o conhecimento geral acumulado naqueles dias, e indaguei: “isso foi um deboche, uma ironia ou um sarcasmo?”.
Imagem: gooooooogle
Arquivo: janeiro 2009