Era uma vez uma família que iria se reunir para o batizado do mais novo de seus membros. Nada mais natural, se não fosse pelo fato de que tal encontro se daria a algumas centenas de quilômetros (para alguns deles mais, para outros menos) de onde vivem, resultando em uma caravana rumo ao local em questão. Tal episódio tampouco mereceria notoriedade, se a parentela em questão não se tratasse da Família TraPu. E com o agravante deste encontro durar quatro dias.
Os personagens desta tragicomé…digo, epopeia familiar, eram:
Este que escreve
Mamãe Chance Sellers (qualquer semelhança de seu nome com o personagem Chance, de Peter Sellers em Muito Além do Jardim, é mera homenagem)
Papai Sabe Tudo
Material Girl (irmã mais velha de Pu)
Cunhado Curitibano (marido de Material Girl)
Afilhado (de Pu, primogênito de Material Girl e Cunhado Curitibano)
Espoleta (o batizando, irmão caçula de Afilhado)
Tio Ilustríssimo (irmão de Papai Sabe Tudo e membro real da família plebeia)
Raspa de Tacho (filho temporão – não, nenhuma relação com o ministro da Saúde – de Papai Sabe Tudo, fruto de seu segundo enlace matrimonial, com Madrasta)
O contexto em que se encontravam estas pessoas era o seguinte:
Mamãe Chance Sellers estava enfurecida com seu ex-marido Papai Sabe Tudo, por este ter-lhe negado carona em seu carro no trajeto de mais de 800 km que separa o Rio de Janeiro de Curitiba e tê-la feito cumprir sozinha, e de ônibus, esta rota que leva meio dia de viagem para ser completada. Motivo: medo (infundado, supõe-se…) de uma censura – ou quem sabe uma retaliação – de Madrasta, que teve de ficar no Rio por motivos de força maior.
Cheguei a intervir neste caso, ralhando com Papai Sabe Tudo ao telefone quando este me contou do “absurdo” do pedido, se achando cheio de razão por ter dito não e considerando tudo muito engraçado, o debochado (Mamãe Chance Sellers contou que dias depois Papai havia lhe telefonado querendo falar com ela – arrependido e disposto a se redimir, supõe-se – mas que ela, orgulhosa, não quis atender, decidida a ir sola mesmo).
Material Girl vivia ainda o luto por seu primogênito de quatro patas, que partira para o céu dos cachorrinhos dias antes. Após os festejos do feriado, ela também iria para o Rio, com o propósito de lançar os caninos restos mortais ao mar (tal e qual Carlota Joaquina, ela não quer que as cinzas de seu bichinho se misture ao pó de Curitiba, cidade que ela renega e não vê a hora de deixar – após bater bem os sapatos).
Tio Ilustríssimo havia recém-terminado com seu par. Já Ternurinha, a irmã do meio de Pu e Material Girl, não tomou parte nesta jornada por temer pela saúde de Julie Joy, manquetola e cegueta, caso fosse deixada em um canil (a cachorrinha, não minha irmã!) durante o período.
E foi assim, em meio a tais inquietações e anseios, que a sui generis Família TraPu teve que superar suas divergências e conviver pacificamente em prol de um bem comum, estrelando este road movie da vida como ela é, que fez de Espoleta, a figura central desta história, uma versão tupiniquim da pequena Miss Sunshine.
A seguir, as melhores cenas desta insólita saga:
A chegada
Parti de São Paulo na noite de quarta, chegando à capital paranaense na manhã seguinte. Fui para a casa de Material Girl, que hospedava Mamãe Chance Sellers, que, assim como Papai Sabe Tudo, havia chegado na véspera – cada qual em seu meio de transporte.
Após as saudações iniciais, fiquei sabendo o motivo da longa espera por uma resposta ao interfone: embora Mamãe Chance Sellers o escutasse tocar insistentemente, não fazia nada a respeito por acreditar que se tratasse do despertador que acordava o restante da casa. “Cheguei na sala e ela estava esparramada no sofá, e o interfone tocando”, entregou Material G.
Minutos depois, chegaram Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho. Como o local de minha hospedagem ainda não havia sido definido, Papai me perguntou se eu ficaria com eles no hotel, ao mesmo tempo em que Material Girl me convidava a ficar em sua casa. Optei pelo ambiente família, ficaria com meus sobrinhos, enfrentando minha alergia a crianças.
“Mas sua mãe já não está perturbando muito, Material G.?”, perguntou meu debochado progenitor, com o único propósito de provocar sua ex-mulher logo pela manhã. Quando ela, indignada, já esboçava seu protesto, eu me antecipei e disse a Papai: “Mamãe Chance Sellers mandou você #!*&#!*”, sendo censurado por aquela a quem eu defendia: “Ai, Pu, que horror!”.
Era a hora da distribuição dos presentes que eu trouxera de minhas férias no nordeste – leia-se camisetas de Porto de Galinhas. Dei a Papai Sabe Tudo uma com a estampa da bandeira símbolo do mergulho, deixando-o feliz com a lembrança e com a primeira oportunidade do dia, e da viagem, de demonstrar toda a sua sapiência: “Vocês sabem o que significa este símbolo?”, nos desafiou. “Sabemos”, respondemos em coro, e lhe tiramos o gostinho de nos ensinar mais essa.
A esta altura, Cunhado Curitibano já havia despertado, e tomamos todos juntos o café da manhã. Foi em meio a torradas e queijos que Material Girl ofereceu à Mamãe Chance Sellers um dos forninhos elétricos que Cunhado tinha ganhado como brinde em sua firma – havia umas dez caixas deles empilhadas no quarto de empregada – por apenas R$ 100,00, preço de filha para mãe (“nas Lojas Americanas está quase R$ 200,00!”) que, no entanto, não se interessou pela promoção. Entre um gole de leite e outro, fiquei sabendo que Mamãe Chance Sellers havia sido uma das consumidoras do genérico de Tropa de elite, mas que ao chegar em casa, se viu diante de um show de Bruno e Marrone. E que ela estava impressionada como Curitiba parecia com San Francisco. “Mas você conhece San Francisco?”. “Não”. Mamãe Chance Sellers é como eu, vê muito filme (“she likes to watch”). E Papai Sabe Tudo ainda encontrou espaço para tecer seus comentários a respeito da embalagem do french vanilla que Material G. usa no café: “parece sapólio!” – já a criatividade de Papai, eu não consigo superar…
Na Ilha do Mel
Estômago forrado, era hora de desbravarmos a Ilha do Mel. Desta primeira etapa do roteiro family hollyday não participariam meu cunhado e meus sobrinhos (e Tio Ilustríssimo, que estava a caminho), que iriam para o trabalho e para a escola, afinal ainda era véspera do feriado. Assim seguiram para o litoral apenas aqueles que puderam prolongar a folga e aquelas que vivem férias eternas.
(No carro, a queda da ficha: eu achava que não viveria mais para ver aquele dia, a Família TraPu reunida novamente, e viajando junta! Só faltava Ternurinha. E havia Raspa de Tacho de quebra. Bom, mas tudo bem, vai…)
Já chegando ao porto, surgia a primeira piada interna do feriado: quando nos julgávamos perdidos, devido à infindável estrada em linha reta que levava aos barcos, exclamei ôôôxe…, explicando a serventia da interjeição no nordeste, empregada sempre que se fica impressionado com algo, ou quando simplesmente não se sabe de nada a respeito. Material G. contou então que Cunhado Curitibano vem ultimamente utilizando o aff….(corruptela de Ave Maria, que de um Ave passou para um mero sopro, afffff….). Ela logo explicou: “ele pegou essa mania do chefe dele”. Cunhado Curitibano é um ótimo agrega….digo, cunhado, mas tem esta peculiaridade: ele tem algo do Zelig, aquele personagem do Woody Allen, que se torna igual à pessoa de que se aproxima. Afff….
Na saída do barco, tentei quebrar o gelo entre Mamãe Chance Sellers e Papai Sabe Tudo, fingindo que iria dar a mão para ajudá-la, mas deixando Papai fazer isso. Após uma prainha, era hora de encher a barriga em família novamente. E também para surgir a segunda piada interna: no barzinho da praia, para tudo o que perguntávamos ao garçom obtínhamos a mesma resposta: “como é o x-tudo de vocês?”. “Bem, isso depende da região. Cada uma faz de um jeito, aqui é assim, assim, assim…”. “E o x-salada?”. “Em cada região é de um jeito. Aqui nós fazemos tal, tal e tal…”. Após experimentarmos a culinária sanduichística típica da região, voltamos para Curitiba. Era hora de rever as criancinhas…
Espoleta
A despeito de minha pedoalergia, em relação a meus sobrinhos tenho uma resistência maior, e consigo encarar bem até quatro dias consecutivos de convívio, sem antibióticos. Afilhado já está com dez anos, e não causa mais transtornos (pelo menos para mim), ocupado que está com seu MP3. Quanto a Espoleta, aquela miniatura de gente de apenas três aninhos de idade…
O mais novo membro da família TraPu é coisinha linda de Deus. A última vez que eu o vira ele ainda engatinhava e emitia grunhidos. Hoje ele já anda, corre, joga bola pela casa, grita com toda a força de seus pequenos pulmões, cospe, morde e faz “fonfon” (brincadeira que consiste em apertar, até o limite da resistência humana, a bochecha de suas pobres vítimas – para o caso de Papai Sabe Tudo ele fez uma pequena adaptação, que é tentar arrancar sua barba da cara). Mais fofo que o tio.
Nos trilhos para Morretes
O programa de sexta-feira foi andar de trenzinho. Não, não era um brinquedinho de Espoleta, mas sim o trem que desce a Serra do Mar até Morretes, cidade histórica do litoral paranaense. Na partida, o guia pergunta ao Tio Ilustríssimo, que estava sozinho em um banco: “onde está seu companheiro?”, referindo-se ao espaço vago ao seu lado. “Eu não tenho companheiro, moço!”, exclamou, virando-se a seguir para nós, zombeteiro: “era só o que faltava!”.
Durante o pitoresco trajeto, Mamãe Chance Sellers pôde mais uma vez dar asas à imaginação. Sobre a balbúrdia que a turma da farofa criava na parte de trás do vagão cada vez que o trem entrava em um túnel, Mamãe considerou: “parece aqueles trens cheios de torcedores que vão para o Maracanã…”. “Você já esteve em um trem para o Maracanã?”. “Não, mas deve ser assim” (se aventurando por muito além do Jardim de Alah, Mamãe Chance Sellers estava descobrindo um mundo todo novo).
Carteado
À noite retomamos uma milenar tradição de família, o biriba (ou buraco, para os íntimos). Jogaríamos eu e Ilustríssimo contra Material G. e Cunhado. Antes de começarmos, Ilustríssimo, para nossa surpresa, mostrou-se contrariado porque jogaríamos valendo apenas trinca de ases, forma que toda a família sempre jogou, desde os mais remotos tempos.
Papai Sabe Tudo, que participaria da partida como observador (outro costume familiar acerca da jogatina, segundo o qual para cada partida há sempre pelo menos um espectador, geralmente emitindo palpites), logo esclareceu o irmão: “o buraco valendo apenas trinca de ases ou trinca de qualquer carta varia de acordo com a região”.
Após uma emocionante partida, em que a ala cor-de-rosa da família mostrou sua supremacia, Papai Sabe Tudo, já no hall do elevador, pergunta a Espoleta: “quer ir com o vovô?”, oferecendo-lhe o colo. “Péta (aperta, em espoletês)! Tchau!”, ele responde, apontando o botão do elevador e acenando em seguida.
No tailandês
Curitiba guarda uma boa, ou melhor, deliciosa, semelhança com São Paulo: comida. Não, não me refiro à atração turístico-gastronômica – que, no entanto, só tem fama, e a comida que é bom não tem nada de especial, sendo válido ir uma vez apenas para conhecer e poder dizer depois – que é o bairro de restaurantes Santa Felicidade (sendo o engodo culinário equivalente de São Paulo o Famiglia Mancini). Refiro-me a lugares como o Barolo, onde jantamos em minha primeira noite um conchiglione recheado de camarão com molho de queijo e camarão de comer exclamando mamma mia!…
No sábado, após um dia de passeio pelo Parque Estadual de Vila Velha, foi a vez de experimentarmos a comida oriental local. Fomos ao Asian Spice, um tailandês/mongol que faz parte de um, como irei dizer, bem-bolado de mais dois outros restaurantes contíguos, que se interligam por dentro e que servem comida indiana e japonesa. De comer meditando, mas a grande atração da noite foi nosso vizinho de mesa.
Quando chegamos à mesa que havíamos reservado, Papai Sabe Tudo notou que ela ficava bem debaixo do ar-condicionado, e então, num lapso, fez a seguinte idiótica pergunta: “será que esse ar desce para baixo ou para os lados?”. “Desce pra cima! HEHEHEHEHEHEHE!!!!!!”, respondeu, numa risada que era um misto do Rabugento com a menina Reagan (de O exorcista), a figura sentada à mesa ao lado.
Tchutcho (susto, em espoletês)! Nos sentamos, o ar-condicionado não jogava o ar para baixo, como Papai Sabe Tudo quis dizer. E eis que Reagan Rabugento desatou a conversar com ele. Puxou papo falando do restaurante, que era a primeira vez que jantava lá e que estava gostando muito, isso porque era “mais viajado que leão de circo” (!!!), e tal. Papai tem disso, as crianças e os bêbados o adoram.
Lá pelas tantas nosso sinistro vizinho desce, deixando sua acompanhante sozinha por um tempo. Até que finalmente ele volta, rindo (“HEHEHEHEHEHE!!!!!!!!!!!!”) porque ela havia ligado pra ele chamando-o para voltar à mesa: “eu estava conversando com os indianos!”, ele se justificou. “Você sai e me deixa sozinha! Tive que te ligar!”, retrucou ela, de pilequinho.
Quando eles se levantaram para ir embora, o doido disse pra doida: “dá tchau ali pros nossos amigos!”. E a dupla dinâmica acenou efusivamente para outro casal de uma mesa do outro lado do restaurante, que havia chegado há pouco e com quem em momento algum eles haviam interagido (os pobres, discretíssimos e elegantes, olharam sem entender lhunfas)! Quando passaram por nossa mesa, para despedirem-se de nós, a namorada de Reagan Rabugento nos desejou felicidades e um “batizado lindo” (pelo visto Papai narrou a eles as páginas de nossas vidas), que essa era “uma ocasião muito feliz”! Como diz minha amiga Mary Black, tem coisa mais linda que bêbado?
Na hora de pagar a conta, quando Papai Sabe Tudo queria saber que parte lhe cabia, veio a pureza da resposta das crianças: “ué, mas o Tio Ilustríssimo disse ontem que pagaria o de todo mundo”, bem lembrou meu bem treinado Afilhado.
O batizado
Domingo. Era chegado enfim o dia da razão de estarmos todos longe de casa, ali reunidos. O dia a partir do qual Espoleta não cairia em tentação, não pecaria, seguiria os mandamentos do Senhor, enfim, se tornaria um santo. Por outro lado, enquanto a inocente criancinha era iniciada na hipocri….digo, fé católica, seu avô não demonstrava nenhum temor a Deus: não tirava os olhos dos peitos siliconados de Turca Boa, madrinha de Espoleta.
Saímos da igreja para o brunch de confraternização no Coeur Douce, que foi uma verdadeira orgia gastronômica, onde tive a oportunidade de praticar, com louvor, um dos três de meus pecados capitais favoritos: a gula.
Epílogo
Após quatro dias em que anos a fio foram passados a limpo, por meio de recordações e memórias trazidas à tona em nostálgicas conversas, tendo o futuro também lugar garantido nas discussões, o catártico feriadão familiar chegava ao fim, e a família TraPu começava a se dispersar.
Eu era o primeiro a partir, em uma chuvosa noite de domingo. Tio Ilustríssimo pegaria o primeiro voo do dia seguinte. Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho colocariam o pé na estrada logo cedo, levando de carona Material Girl e a urna funerária contendo as cinzas de meu sobrinho primogênito canino para serem jogadas ao mar de Ipanema. Mamãe Chance Sellers passaria o dia seguinte em Curitiba, à espera do horário do ônibus, que só sairia à noite. Por que Material G., que se hospedaria em casa de sua mãe no Rio, não faria a gentileza de ir com ela fazendo-lhe companhia? “Você paga a passagem?”, responde ela com outra pergunta, sem o menor pudor.
Durante a derradeira partida de buraco, o pandemônio era geral. Tio Ilustríssimo chegou a subornar Afilhado com uma nota de R$ 50,00 para que ele tomasse conta de seu irmão mais novo (leia-se mantê-lo longe da mesa de jogo). Eu já imaginava como seria um encontro entre Espoleta e Xavier, o cão mais inteligente do mundo, visualizando um confronto do tipo Alien x Predador: quem cansaria primeiro o outro? Qual pilha acabaria primeiro? Foi quando lembrei, num suspiro, que Xavier, o cão mais hiperativo do mundo, tem a vantagem de ao menos ser silencioso…
E era com aperto no coração que me lembrava também de que aquele era o último dia de minhas tão almejadas férias. Depois desses quatro dias, eu precisava de pelo menos uma semana a mais. Afff…..
No entanto, quando Mamãe Chance Sellers, Material Girl, Afilhado e Espoleta foram me levar ao elevador, e sua porta fechou como uma cortina a cena dos quatro acenando tchau (praticamente os Teletubbies, só faltava o figurino), minha garganta deu um nó.
Às vezes eu sou um fofo.
Foto: goooooogle
Arquivo: outubro 2007