Posts Tagged ‘Família’

Debochados até a morte

3 de março de 2011

Essa semana meu sobrinho mais velho, Afilhado, ligou para Mamãe Chance Sellers contando a última que tinha aprontado com seu indefeso irmão, Espoleta: ele tinha se fingido de morto. Literalmente. Enquanto brincavam, Afilhado simulou um piripaque, se jogou no chão e lá permaneceu imóvel, olhos fechados, indiferente às violentas sacudidas que seu irmão, em pânico, lhe dava, tentando reanimá-lo. Aos prantos, ele pedia, “não morre, Afilhado! Não morre!”.

“Mas aí eu não aguentei mais fingir…”, contou Afilhado à sua avó. “Que bonitinho…”, pensei eu, enquanto esta me retransmitia a história, “…ficou com pena do irmão”, deduzi. Dedução tão ingênua quanto a de meu sobrinho caçula: “…eu não consegui segurar o riso!”, completou Afilhado, arrematando que quase….morreu de rir!

Até aí a história não teria nada de original, apenas uma brincadeira entre irmãos pequenos. Lembro que minha irmã Ternurinha já tinha feito uma dessas comigo quando eu devia ter a mesma idade de Espoleta. Aliás, uma só não, duas, e o pequeno Pu caiu em ambas, diga-se de passagem.

Assim como Espoleta, duplamente enganado.  Só que com ele foi no mesmo dia, uma à tarde, outra à noite, coitadinho. Afilhado não teve dó de repetir a sinistra pilhéria? Não, não foi bem assim…

Quando minha irmã e mãe dos meninos, Material Girl, chegou em casa, Afilhado contou a ela o ocorrido, orgulhoso do sucesso de sua debochada trama macabra. Minutos depois, quem fingia o desmaio final para o pobre do Espoleta?

Sim, isso mesmo. Como eu disse, não há nada de diferente em uma criança de 12 anos pregar uma peça em seu irmão de cinco. Mas aquela que gerou em seu ventre o pequenino ser, e supostamente tem responsabilidade sobre ele, fingir que o deixou órfão, é algo que só poderia acontecer em uma família.

Sim novamente. Na Família TraPu, que tem em Papai Sabe Tudo, Material Girl e este que escreve (e, para orgulho destes, Afilhado seguindo os mesmos passos) os estandartes do deboche. Que não poupa a ninguém.

“Afilhado!”, aterrorizava-se novamente Espoleta, mal havia se refeito do susto de horas antes. “Agora ‘é’ só nós dois!”, constatava ele a dura realidade que, em sua cabecinha infantil e ludibriada, ambos enfrentariam, sem lembrar da existência paterna, novamente aos prantos.

Não fiquei sabendo como essa segunda farsa terminou, mas posso deduzir que da mesma maneira que a anterior: Material Girl não deve ter conseguido levá-la adiante. O riso certamente não deixou.

Foto: goooooooogle

Contos de Madame Valentim

2 de agosto de 2010

As aventuras de Madame Valentim no tráfico louco

Já contei de minha época da inocência em casa de Madame Valentim, na Baixada Fluminense, onde passava alguns dos juvenis dias de minhas férias. Dias em que eu corria pelas ruas e me sujava inteiro de lama e suor, como em uma propaganda de Omo. Os tempos eram outros, e a vizinhança também: depois disso, Madame Valentim se mudou para um lugar menos bucólico, terra de Zés Pequenos e Manés Galinhas. Isso mesmo, a Cidade de Deus. Mas Madame Valentim, como se sabe, nunca foi de dar mole pra mané. E com seus novos vizinhos não seria diferente…

No geral, Madame Valentim não tinha atritos com eles. Quando ela saía de manhã cedo para trabalhar, o “gerente” de plantão da boca de fumo (e outras coisas mais…) lhe dava sempre bom dia, e por vezes complementava: “vai pra luta, né, tia?”. “É, mas não é a mesma luta que a tua, não”, respondia Madame Valentim, educada, mas muito franca. E assim coexistia com um mundo que andava armado até os dentes, vendia e comprava tóxicos e armas no meio da rua, e tinha suas próprias leis e meios de aplicá-las. Para sobreviver naquele ambiente hostil, onde já vira conhecidos se perderem das mais diversas (inclusive irreversíveis) formas, Madame Valentim não tinha outra solução que não adotar a política da boa vizinhança.

Para ajudar no orçamento, Madame Valentim fazia coxinhas e sacolés, que vendia na região. Sem distinção. “Eram clientes como outro qualquer”, defende-se muito justamente Madame Valentim, que entre a clientela especial tinha um acordo igualmente especial: vendia fiado, pois o pessoal da boca só recebia o dinheiro na sexta-feira à noite. Confiava neles, e o trato dava certo, pois eram pontuais no pagamento. Certa vez, porém, um deles quis dar a volta em Madame Valentim: “não vou pagar”, disse ele quando Madame Valentim foi lhe perguntar sobre o que lhe era devido. “Como não vai pagar?, você está me devendo, é meu trabalho”, tentou o diálogo Madame Valentim. “Não vou pagar, não quero, não vou”, disse o desaforado simplesmente. Pra quê. Madame Valentim foi se queixar diretamente com a chefia. Resultado: no dia seguinte o mané apareceu todo quebrado, da bela e merecida sova que levou. E todo quebrado foi pagar Madame Valentim.

O episódio com o caloteiro não foi o único em que abusaram da cordialidade de Madame Valentim. Certa vez, ela chegou em casa e tinha um traficante deitado em sua cama. “O que você está fazendo na minha cama?!”, perguntou ela entre assustada e indignada. “Pô, foi mal, tia!”, respondeu ele, dizendo que tinha entrado ali pra se esconder dos “vermes” (como eles chamam carinhosamente a polícia) que o perseguiam. “Olha, você não me leva a mal, mas eu não deixo nem meu tio que mora comigo deitar na minha cama”, rebateu Madame Valentim após se refazer do susto. “Sentado pode?”. Madame Valentim pensou. “Pode, mas no sofá”, teve que ceder um tanto, resignada. E o traficante obedeceu, sentado no sofá de Madame Valentim enquanto esperava a poeira da rua baixar.

De outra feita, um dia tocaram a campainha na casa de Madame Valentim dois traficantes que tinham jogado por cima do muro de sua casa trouxinhas de cocaína, em sua fuga dos vermes, pedindo permissão para entrar e recolher a parada. Madame Valentim foi ver e seu quintal realmente estava cheio de papelotes. Passou uma descompostura nos bandidos, que eles não fizessem mais aquilo porque iriam colocá-la em maus lençóis. Eles se desculparam, “mal, tia!”, recolheram os ditos e se foram. E Madame Valentim deu mais uma busca pela área, para ver se não tinha ficado nenhum. E tinha.

Pegou aquele papelote, e ia jogá-lo na privada, quando teve uma ideia melhor. Ela tinha um vizinho tão simpático, que sempre lhe levava bertalha de seu quintal. Tinha vezes que ele aparecia até com uma caixa de empadão congelado da Sadia (e Madame Valentim não questionava sua procedência, “o que os olhos não veem o estômago não sente”). Como ela conhecia certos gostos dele, resolveu retribuir tanta gentileza. Foi até sua casa: “oi tia, a que devo a honra?”, ele a saudou. “Tenho uma coisa aqui pra você, posso entrar?”. Madame Valentim fez então o agrado ao vizinho, que muito lhe agradeceu. Quando Madame Valentim ia saindo, ele lhe chamou, “peraí, tia!”. Ele tinha mais um maço de bertalha para Madame Valentim.

Outro vizinho de Madame Valentim com problemas com o tóxico era conhecido como Grande. Certa vez, Grande pediu dinheiro emprestado a Madame Valentim: “madrinha, você não tem cinquenta centavos pra me emprestar?”, pediu ele, trincando os dentes. “Porra, Grande!”, respondeu simplesmente Madame Valentim, que não nasceu ontem para não saber para que ele queria o dinheiro, não se conformando com a que ponto chegava seu vizinho, pedindo cinquenta centavos para sustentar o vício.

Grande se surpreendeu com o palavreado: “madriiiiinha, você é uma dama, não fala iiiisso!…”. “Onde você está vendo dama aqui? Só se for da zona”, rebateu a fofa da Madame Valentim. E não emprestou a Grande os cinquenta centavos. E hoje ele não precisa mais. Um dia estava Madame Valentim chegando em casa quando ouve alguém lhe chamar: “madrinha!”. Reconheceu a voz de Grande. Ela se virou, mas achou que tinha se enganado. Grande estava todo alinhado, banho tomado, cabelo penteado com gel, usando até terno. Grande tinha largado as drogas. Grande tinha descoberto Jesus.

A história de Grande, porém, foi uma exceção entre as muitas outras que Madame Valentim estava acostumada a escutar, tão próximas a ela, durante os mais de dez anos em que viveu ali. Porque, realmente, na Cidade de Deus era mais comum terminar vendo Deus do que encontrar Jesus, o que, na prática, faz uma grande diferença na vida de uma pessoa… E Madame Valentim se cansou disso tudo e foi embora dali, voltou para a Baixada. Poderia ter se corrompido como muitos que conheceu, mas não perdeu a compostura jamais (esqueçamos o episódio da troca do papelote pela bertalha…).

A despeito da proximidade diária, Madame Valentim sempre esteve longe das drogas. O mais próximo que delas chegou foi na verdade anos antes de ir morar em God City. Ela estava ajudando sua irmã, na casa em que esta trabalhava em Niterói, a arrumar o estrago deixado pela festa de arromba dada na véspera por seus patrões, um casal gay (festa esta onde a criadagem, a irmã de Madame Valentim inclusa, tinha que usar turbantes! – como diz meu amigo Marcos Farto, viado não é coisa de Deus…). As “provas do crime” estavam todas lá: havia baganas, ou seja, guimbas de maconha, por toda a casa. Quando as duas faxinavam o lugar, a irmã de Madame Valentim lhe mostra: “Madame Valentim, sabe o que é isso? Maconha!”, contava ela, exagerando uma reação de surpresa.

“Ih, Crespina, será que isso dá barato mesmo?”, perguntou Madame Valentim, já pegando a bagana da mão de sua irmã, e olhando à sua volta. “Madame Valentim, o que você vai fazer?!”, admirava-se sua irmã. Madame Valentim ligou a boca do fogão, acendeu a bagana e experimentou. Segundo ela, não lhe deu barato algum, apenas um baita enjoo. E Madame Valentim viu que realmente aquela não era a sua.

Hoje, em sua nova casa na Baixada Fluminense, Madame Valentim vive uma vida tranquila, longe dos costumeiros sobressaltos que vivia na Cidade de Deus. Perto de sua vizinhança anterior, seus novos vizinhos são ladrões de goiaba. Literalmente. “Já pensei até em cercar o quintal com arame farpado”, conta ela, referindo-se aos constantes assaltos a que é submetida a goiabeira do pequeno pomar de sua casa por alguns moleques das redondezas.

Quando ela percebe que eles estão pulando o muro, sai correndo atrás, armada. De vassoura. “Ah, seus viados filhos da p…!”, sai ela gritando atrás dos pequenos ladrões, dando-lhes vassouradas no traseiro. E por que ela ainda não cercou o quintal com arame farpado, conforme disse? “Quando pego os moleques no flagra lembro que eu fazia a mesma coisa na idade deles, e prefiro deixar pra sair correndo atrás com a vassoura quando aparecem. Assim eu também me divirto”.

Foto: goooooogle

No stress? ou De como 10 dias são mais do que suficientes para a Família TraPu passar junta, ainda que em Garopaba

29 de junho de 2010

Pouco mais de um ano depois de seu último encontro itinerante, a família TraPu se reuniu novamente, desta vez para os festejos de Réveillon. Agora a trupe, digo, o time, estava desfalcado das presenças de Mamãe Chance Sellers, que ficou no Rio cuidando de sua caçula, Cachorro do Mato, e de Tio Ilustríssimo, que preferiu ver o ano chegar antes e assistiu aos fogos pipocarem na Tailândia.

Para reunir a segregada família, Papai Sabe Tudo alugou uma casa em Garopaba (sim, aquela cidade depois de Florianópolis, das camisas no stress), onde o novo ano seria recebido em companhia de seu filho carioca do Rio, Raspa de Tacho, seu filho carioca de São Paulo, eu, sua filha carioca de Curitiba, Material Girl, o agregado, digo, Cunhado Curitibano, e os rebentos do casal, Afilhado e Espoleta (minha outra irmã, Ternurinha, mais uma vez se escusou de participar da trama).

Imbuído de todo seu espírito aventureiro (e econômico), lá fomos nós – Papai, Raspa e eu, que havia passado a ceia de Natal em companhia de Mamãe Chance Sellers – pela estrada afora, do Rio para a longínqua terra dos desestressados, ao sul do país. Ainda com perus, bacalhaus e rabanadas no bucho, botamos o pé na tábua logo cedo, no dia 25. Pernoitamos em Curitiba, em casa de Material Girl. Enquanto comíamos uma pizza, Material contou da advertência de Ternurinha, que não esquecêssemos de levar nossas focinheiras.

“E por que ela não veio, a Ternurinha?”, quis saber Cunhado Curitibano. “Ela não encontrou uma focinheira do tamanho dela!”, respondeu minha afiada irmã primogênita, em meio a gargalhadas com seu próprio gracejo (acompanhada pelo resto da família, é claro). “Esse fim de ano vai ser divertido, hein?”, comentou comigo Cunhado. “Vai”, respondi.

Lições de vida

Ainda na primeira parte do trajeto, Rio-Curitiba, antevimos o quão proveitoso seria aquele passeio. Uma frutífera troca de conhecimentos já se anunciava, da qual sairíamos indubitavelmente enriquecidos, iniciando um novo ano com novas e importantes informações. Eu, por exemplo, após elogiar a destreza de meu pai ao volante (por deboche?, ou ironia?, ou sarcasmo?, como será explicado a seguir), fiquei sabendo que destreza vem de destro, direito, e que, ao contrário, o sinônimo de esquerdo é sinistro, denotando o preconceito àqueles que se valem da mão esquerda para executar suas funções manuais (sim, meu pai é canhoto, provavelmente por isso ele não seja assim tão destro na direção).

Durante o caminho, tive a satisfação de explicar a Papai Sabe Tudo a diferença entre TOC e transtorno bipolar – segundo ele, tudo doença de quem não tem o que fazer. Já o noventista Raspa de Tacho adquiriu um pouco de conhecimento de música brasileira dos anos 80, ao falarmos a ele sobre a Blitz, cujas músicas embalavam as viagens familiares de minha tenra infância, e que naquela nova jornada, como que por encanto, ressurgia nas rádios por duas vezes, a mesma canção: A dois passos do paraíso (aquela do Arlindo Orlando, um caminhoneiro conhecido da pequena e pacata cidade de Miracema do Norte, que escafedeu-se deixando em prantos sua amada Mariposa Apaixonada de Guadalupe).

E os próximos dias nos reservavam novas e cruciais trocas de saberes. Esclarecendo uma dúvida levantada por Raspa, eu e Papai explicamos, o mais didaticamente possível, ilustrando com exemplos familiares, a diferença entre deboche, ironia e sarcasmo (tema pertinente, com cadeira cativa na família: a irmã de Papai Sabe Tudo, Tia Veríssima, vive lhe passando pitos, dizendo que ele e seus filhos, eu e Material, somos três debochados).

Naqueles ensolarados dias, Papai Sabe Tudo também incorporaria a seu já vasto vocabulário uma nova palavra: larica. Explico. Estávamos todos tomando um belo açaí em um quiosque em Guarda do Embaú, quando minha irmã sugeriu que comêssemos a seguir um doce num estabelecimento chamado Larica, rindo do nome escolhido para o local. Contei que em Trindade também tem um lugar chamado Larica, lembrando que o nome é bem apropriado a balneários como aqueles.

Eu e Material Girl rimos, para curiosidade de nosso pai, que não alcançava a graça daquele papo estranho, mas já previa que boa coisa não podia ser: “O que foi, hein? Do que vocês estão rindo? O que é larica?”, quis saber. “É um nome pitoresco, legal para lugares praianos assim”, tentei despistar, mas Material G. acabou lhe explicando a real acepção do termo.

Complementei explicando que, assim como o Leite Moça acabou popularmente se tornando um genérico para identificar todas as marcas de leite condensado, a larica também expandiu sua significação para qualquer desejo de comer um doce, a qualquer hora, não necessariamente apenas naquela de origem. “Assim, se um dia você ouvir Raspa de Tacho dizendo que está na larica, não se assuste, é uma pura e simples vontade de ingerir açúcar”, exemplifiquei, em um belo e fraternal gesto de livrar a barra de meu irmão surfista de 17 anos de idade, eu que não suporto qualquer tipo de fumaça que deixe fedendo o ar, meu corpo ou meu hálito. Às vezes eu sou um fofo.

A sensatez de Ternurinha

Tamanho ganho de conhecimento não se restringiu apenas ao círculo Pu – Papai Sabe Tudo – Raspa de Tacho, porém. Em Garopaba também tive a oportunidade de ensinar a meu sobrinho caçula, Espoleta, a Lei da Ação e Reação de Newton, com exemplos práticos: quem dá tapa, leva tapa, quem morde, é mordido. Minha irmã, mãe do jovem aprendiz, interpretou mal o intuito didático de tio tão zeloso, e, indignada, citou o manjado “Deus escreve certo por linhas tortas”, referindo-se a minha espontânea incapacidade reprodutora. “Eu diria que a natureza é sábia, porque torta é a sua cabeça”, corrigi.

Assim, aos poucos a recomendação de Ternurinha ia se revelando realmente bastante válida, pena que não tivéssemos lhe dado a devida atenção e ter deixado passar tão indispensável item na mala de uma viagem em família, principalmente uma família cujos irmãos não praticamente se atracavam para disputar quem vai tomar banho primeiro depois da praia há tantos anos, e sentiam falta disso, como veio a acontecer em um daqueles escaldantes derradeiros dias do ano que findava. Felizmente, na falta de nossas focinheiras, Papai Sabe Tudo e Cunhado Curitibano se incumbiram de prevenir o ataque de Material Girl à minha integridade física.

Quarto de princesa

Por outro lado, outro fator desencadeador de confrontos fraternos em férias bastante comum foi por nós desprezado logo de cara: a escolha dos quartos. Eram três, cada um de uma cor. Quando adentrei aquele com a parede cor-de-rosa (com um trio de borboletas de plástico colado, coberto de purpurina), cortinas e tapete de tricô na mesma cor, não tive dúvidas: “é meu”.

“Material Girl e Cunhado Curitibano ficam obviamente no de cama de casal, com Espoleta no colchonete, Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho podem ficar na cama de casal do outro quarto e eu fico neste com Afilhado, de camas de solteiro”, sugeri. Às vezes eu sou muito fofo. Sugestão aceita, prontamente batizei aquele recinto onde se daria meu sono de beleza pelos próximos dias: quarto de princesa.

Não vinde a mim as criancinhas

Estava um dia eu, lindo, inteligente e sossegado em meu quarto de princesa fazendo minha leitura noturna de um livro de crônicas do Woody Allen quando me aparece Espoleta: “Pu!”, anuncia ele sua chegada, abrindo a porta. “Ai, meu Deus”, penso eu, minha alergia a crianças já me fazendo coçar. Ele vem até minha cama, me abraça e me dá um beijo no rosto. “Que bonitinho, ele também sabe beijar, além de bater e morder”, considerei afinal.

Ele então se afasta, “tchau”, apaga a luz e fecha a porta. No escuro, livro na mão, considero o desejo de enviá-lo para o lugar que dá nome ao que leio: Fora de órbita.

Cuidado com a Cuca

Não foi apenas a peleja com minha irmã que fez tremer o chão da pacata Garopaba. A família já havia dito a que veio logo na primeira noite, representada por Raspa de Tacho. Havia, na casa vizinha, um grande e velho golden retriever, o Beethoven, que não chegava a ser magnífico, mas era extremamente bonachão. E todos se afeiçoaram ao bicho, Espoleta ficava chamando-o pelo muro, “Bitôôô! Vem! Bitôôô! Vem!” etc. E todos foram dormir.

À noite escuto gritos. Uma voz que eu não identificava gritava violentamente, parecendo uma briga. “Que vizinhança barraqueira”, pensei, e é claro que tentava discernir alguma palavra de todo aquele palavreado vociferado. Até que consegui identificar a voz de Papai Sabe Tudo em meio a toda aquela gritaria, e ouvi claramente ele dizer o nome de Raspa de Tacho.

Meu irmãozinho caçula em perigo! Pulei da cama já adrenalizado o suficiente para arrancá-lo de dentro da boca de uma cobra gigante ou debaixo do machado de algum serial killer local sobre o qual poderíamos não ter sido alertados. Quando entrei no quarto deles, o menino se estrebuchava na cama, “ah!!!!! Sai! Sai!”, e meu pai o sacudia, em vão, que nada o despertava daquele estado que mais parecia uma possessão, Raspa era praticamente a menina Reagan.

Em seguida assomaram à porta Material e Cunhado, igualmente atônitos. Eis que enfim Raspa desperta de seu sonho demoníaco, “que foi? Quem estava gritando?” (!!!). “Cadê o cachorro?”, perguntou, olhando para os lados. Ficamos então sabendo que o escândalo que acordou toda a vizinhança (no dia seguinte ficaríamos sabendo que os vizinhos estavam para chamar a polícia quando nos escutaram então rindo e deduziram o que se havia passado) tinha sido causado por um pesadelo com a fera Beethoven, o Bonachão, que ficava gemendo abaixo da janela do quarto.

Raspa de Tacho foi devidamente vaiado e cascudeado, e é claro que por isso o pobre foi alvo de nossos tradicionais deboches pelo resto de nossa estada. E eu saí do quarto dele ameaçando: “mais uma dessas e é você quem vai ficar no quarto de princesa!”.

Velha infância

Além da música do Arlindo Orlando, outras lembranças de menino surgiram naqueles dias. Tive um grato reencontro com o tatuí, aquele bichinho branco e simpático que vemos quando a onda termina na areia e volta para o mar, e eles rapidamente vão cavando, fazendo cosquinha nos pés de quem passa por cima, desesperadamente tentando escapar de crianças como eu, 20 anos atrás (quando ainda havia tatuís em Ipanema), e de Espoleta, hoje, que os chamava de “ratatui”.

A guerra de mamonas também foi um dos esportes praticados (embora o que tenha feito mais sucesso tenha sido o moderno enraquetamento elétrico de mosquitos, com uma aparentemente infantil minirraquete de tênis que impiedosamente mata eletrocutados incautos mosquitos que caçamos em sua ronda pelo ar) em família. “Uma de minhas lembranças mais remotas é o Pu tentando enfiar uma mamona na minha boca enquanto eu ainda era pequenininho”, solta de repente Raspa de Tacho.

Como? “Nunca coexistiram eu, você e um pé de mamona!”, me defendi da calúnia. “É, mas eu me lembro”, insistia Raspa na tentativa de me pintar um monstro maior do que sou (imagina, eu tentando enfiar uma mamona goela abaixo de uma indefesa criancinha, eu prefiro simplesmente me manter afastado delas!). “Você sonhou com isso, assim como sonhou que o pobre do Beethoven estava te atacando, seu problemático!”, e o alcancei e tentei enfiar quatro mamonas em sua boca. Até ser obrigado a bater em retirada diante da artilharia pesada que Afilhado, Espoleta e Papai Sabe Tudo formavam sobre mim.

Vacas, cachorros, pinga, uma presepada

Dia 31 de dezembro. A Família TraPu tem a indigesta ideia de realizar um churrasco para a virada de ano. Eu, que venho sendo atormentado em sonho pelas vacas e bois que ingeri ao longo da vida, achei que seria de péssimo agouro comer os bichos justo nos primeiros minutos de um novo ano.

E fiquei no pão de alho e nas linguiças, de frango e suína (sim, a galinha e o porquinho também são bichinhos de Deus, mas vamos por etapas, até porque meus pesadelos são ainda só com os bovinos). E na caipirinha. A caipirinha ficava a meu cargo, não só de beber como de fazer para todos. Eu adoro fazer caipirinhas. É para mim motivo de grande orgulho ver os monstros que crio depois de ingerirem duas ou três doses de minhas caipirinhas. Vê-los revirando os olhos, enrolando a língua, trocando as pernas, subindo em cima da mesa, fazendo algo que jamais fariam em seu estado normal, enfim. Adoro. É um grande orgulho.

Era a hora de viver a experiência em família. Mas, para minha decepção, ninguém revirou os olhos, enrolou a língua, trocou as pernas, subiu em cima da mesa nem nada mais do gênero. Eles são ruins que nem eu, está no sangue. Mas compartilhamos o êxtase familiar. Explico. Na véspera, uma moça que nos vendeu geleias elogiou nossa linda família, que era “um êxtase” nos ver reunidos, que éramos bonitos, unidos e alegres. Pois depois de algumas caipirinhas foi super divertido lembrar disso, nos rendeu boas gargalhadas, um êxtase realmente.

Papai Sabe Tudo, após elucubrar sobre as pernas da “Beth Sangalo”, anunciou que iria dar as gorduras da picanha para a “Isabel”, a boxer da outra casa vizinha, que se chamava Mel. Ciumento, entrei na disputa, formando um bizarro triângulo com meu pai e uma cachorra. Peguei alguns corações de galinha e levei para a dócil cachorrinha: “o meu coração é da Isabel!”, bradava eu (tem coisa mais linda que bêbado?). No dia seguinte atestaríamos que, felizmente, estava tudo bem com Mel. E com Beethoven, que do outro lado também se regalou com nossa orgia carnívora.

Quanto a mim, resoluto em minha decisão de poupar as vaquinhas, lá pela terceira caipirinha já não encarava o assunto com tanta rigidez. “Um pedacinho só não tem problema”, deliberei, enquanto abocanhava com todos os meus dentes um sangrento pedaço de picanha. Fiquei ali parado um tempo, olhando, e minha conclusão foi que mais um pequeno pedaço também seria perdoável. E comi mais um. E fiquei só pelos dois nacos de carne mesmo, depois voltei para o pão com alho. E para a caipirinha, claro.

Hora de dormir. Meu primeiro sonho do novo ano? Eu ia ver a Mel, e ela era uma vaca. E eu a acarinhava, passava a mão no pelo macio e bem tratado de sua cara, com olhos dóceis e inofensivos, e pensava: “por que cuidam tão bem dela, a tratam tão bem, se depois vão matá-la? Por quê?”, e me desconcertava diante do brutal e inevitável destino do pobre bicho, a quem nos apegamos em poucos dias. E o mundo se pareceu cruel por demais para mim.

Expulsos do paraíso

Ao contrário do planejado, que era ficar naquele paradisíaco balneário até domingo, fomos obrigados a voltar pra casa dois dias antes, impelidos pela torrencial chuva que se abateu sobre a cidade, e que parecia que vinha para ficar.

Novamente no carro, fazendo o caminho contrário, eu, Raspa de Tacho e Papai Sabe Tudo compartilhávamos os derradeiros momentos de êxtase familiar. Material Girl e sua família ficariam em Curitiba, eu ficaria em São Paulo, e Papai e Raspa seguiriam para o Rio.

“Sentiremos sua falta”, declarou Papai Sabe Tudo quando comentei sobre as escalas nas cidades. Achei que aquela seria uma boa oportunidade para uma revisão de todo o conhecimento geral acumulado naqueles dias, e indaguei: “isso foi um deboche, uma ironia ou um sarcasmo?”.

Imagem: gooooooogle

Arquivo: janeiro 2009

Tortos direitos

25 de maio de 2010

Minha irmã Ternurinha foi recentemente vítima de mais um episódio de violência em minha abandonada cidade (pelos governantes, não por mim, apesar da atual distância). Felizmente não aconteceu nada com ela, mas o vidro de seu carro se fez em milhares de pedaços e sua bolsa arrancada do banco de trás antes que ela tivesse tempo de se virar para entender o que se passava – enquanto aguardava o trânsito andar.

Foram ela e Mamãe Chance Sellers à delegacia fazer o B.O. Após o delegado contar um pouco de sua vida, mostrar a foto do neto em seu celular para minha mãe, e ela também contar alguns episódios pitorescos dos seus, a conversa voltou para a ocorrência, e Mamãe Chance Sellers já se sentia à vontade para expressar sua opinião a respeito do que deve ser feito com os meliantes que praticam ocorrências como aquelas que elas registravam.

Ao que o delegado, diminuindo o tom de voz, aproxima-se de minha mãe e Ternurinha e lhes confidencia: “quer saber? Eu também acho isso, mas não podemos falar nada, porque os direitos autorais vêm em cima da gente!”. As duas se entreolharam. “Direitos humanos…”, emendou minha irmã.

“Isso, isso!”, concordou o delegado. Mas acho que minha irmã acabou confundindo o delegado, que sabia exatamente do que estava falando. Afinal, quem é que, em detrimento dos direitos de pessoas honestas e trabalhadoras, sai sempre em defesa dos autores de crimes?

Imagem: gooooooogle

Arquivo: novembro 2008

À milanesa

16 de maio de 2010

Domingo à noite na sala de Papai Sabe Tudo. Domingo à noite na sala de Papai Sabe Tudo assistindo às Olimpíadas. Durante as provas de atletismo, Madrasta lança a questão:

– Essa areia não rala as pernas, não? Deve machucar!, intrigava-se ela, se referindo à queda após o salto, na caixa de areia.

É claro que a resposta ficou a cargo de Papai Sabe Tudo:

– Não, a areia deve ser fininha… – deduziu ele – …a não ser que entre na perereca, concluiu Papai Pensa em Tudo.

Mas sua sapiente imaginação ainda não havia atingido seu limite:

– Principalmente se ela tiver um encontro à noite, quebrou Papai o recorde de lançamento de abobrinhas.

Mas de qualquer forma, ainda bem que não é comigo que ela vai sair. Esse longínquo país da Tchetcheca é realmente muito distante pra mim.

Foto: goooooooogle

Arquivo: agosto 2008

Madame Valentim

18 de abril de 2010

Parte 1 – Madame Valentim, uma lição de vida

Ipanema, anos 70. Na então bucólica rua Garcia D’Ávila (“lembra que tempo feliz, ai que saudade…”), muitos anos antes desta se corromper em rua de grifes com pretensões a Oscar Freire, uma mulher de peso, digo, uma mulher carregando o peso de várias sacolas de supermercado, esbravejava com a pequena criança que escapara de suas mãos e atravessava a rua correndo em direção à quitanda (onde hoje em seu lugar há mais uma das butiques da região, vizinha da Cartier, “…Ipanema era só felicidade…”), gritando-lhe pelo nome e fazendo ameaças.

A mulher, suarenta pelo esforço físico e pelo nervoso, entra esbaforida na quitanda sem saber se continuava a zangar com a criança ou se dividia a reprimenda com o português, dono do estabelecimento, que acabara de atender ao pedido da pequena, lhe dando uma bala soft (aquela da lenda urbana segundo a qual quem a engolisse sofria morte súbita). “Sua mãe já falou pra você não chupar essa bala, você se engasgou com ela e quase morreu!”, ralhou a mulher. “É só uma”, justificava o português, mais interessado em vender a bala do que na integridade física de sua pequena cliente. “Mas não pode nenhuma, porque semana passada ela se engasgou com uma dessas e ficou roxa!”, encerrou a discussão, pagando o quitandeiro e tomando a criança pelas mãos.

Enquanto a arrastava para fora da quitanda, a pequena peste, digo, a criança, se atira no chão e começa a gritar. “Levanta já daí!”, a mulher ordenou. A criança não só não levantava como elevava seus gritos. ”Levanta JÁ daí”, repetia a mulher, também carregando a voz. A criança? Sim, isso mesmo. A mulher tira o chinelo e lhe aplica uma boa chinelada no lombo, “levanta!”. Mais uma, “LEVANTA, anda!”, e nada. Levantou na terceira, decerto a mais bem dada.

Nisso, já parava gente para olhar o que era aquilo. Uma senhora se choca com a cena: “é sua filha?”, dirige-se ela à mulher. Coitada. “Graças a Deus não, por quê?”.  “O que você é dela?”. “Sou a babá!”. “Você não pode fazer isso com ela, se eu soubesse quem é a mãe dela…”, tentou a ingênua senhora intimidar a mulher. “Barão de Jaguaribe, 241. Pode ir lá falar com a mãe dela! Se ela já tiver levantado da cama!”. Por essa a senhora não esperava. Apesar de ter pedido, convenhamos.

Mas quem era a tão impetuosa mulher, afinal? Madame Pimenta da Silva Valentim. Ou, simplesmente, Madame Valentim.

Curitiba, 2009. “Tia, é verdade que a Madame Valentim vem trabalhar aqui em casa?”, perguntava aflito o menino, engolindo em seco, com medo de uma resposta confirmativa a seus temores. Não, não era verdade. Mas a tia do menino não desmentiu sua irmã. Era necessário sustentar a história, a fim de incentivar o crédulo garoto a permanecer na linha. Algo do tipo: se comportou mal, “vou chamar a Madame Valentim pra te dar educação!”. Não quer obedecer? “Madame Valentim!”. Malcriação? “Olha a Madame Valentim!”.

E assim Madame Valentim permanecia no imaginário infantil daquele menino como um misto de Cuca e Super Nanny. Sua mãe lhe contava histórias reais da não muito ortodoxa educação que recebera de Madame Valentim, sua babá. E quem era a mãe do menino? Sim, aquela mesma menina de 30 anos antes, que se atirava no chão da Garcia D’Ávila até ser levantada na terceira chinelada. E essa menina era minha irmã mais velha, Material Girl. E minha outra irmã, Ternurinha, confirmava a nosso sobrinho, Afilhado, que viria acompanhada de Madame Valentim em sua próxima visita a Curitiba, incutindo no pobre do moleque um verdadeiro horror em relação a seu futuro e o desejo de nunca mais receber visitas de parentes do Rio (sabe-se lá quem podia vir junto!).

Madame Valentim foi babá de minhas duas irmãs. De mim, infelizmente, ela só cuidou até os dois anos de idade. Sim, infelizmente. Não, não foi aí onde tudo começou, uma espécie de complexo de Édipo com toques de masoquismo que perduraria até minha vida adulta, quando se passaria a se refletir em minhas relações (não muito) afetivas, agora num bizarro subtipo de complexo de Electra. Afinal, sempre fui uma criança adorável, gritar na rua e me jogar no chão nunca foi meu perfil. Comigo Madame Valentim era só alegria.

Alegria e cafuné. E seu bolo de chocolate. Foi Madame Valentim que me ensinou a dar beijo de esquimó. E a cantar A velha debaixo da cama. E me levava pra brincar na praça Nossa Senhora da Paz e no Jardim de Alah. E pra passar férias em sua casa na Baixada Fluminense. Onde, brincando com seus inúmeros sobrinhos, eu me sujava inteiro de terra e lama, saía correndo pela rua, experimentava todos os sabores de sacolé e soltava até pipa. Foi com Madame Valentim que fui a SP pela primeira vez! Eu tinha sete anos, e ganhara de meu pai uma excursão para ir com Madame Valentim ao Playcenter, Simba Safari e Cidade da Criança, um roteiro incrível para as crianças da classe média carioca dos anos 80 – o Playcenter era maior que o Tivoly Park, e mais perto e econômico que a Disney (além de ter o brinquedo sensação do momento, a boneca Eva!) -, numa época em que ainda não havia o Hopi Hari ou o Wet’n Wild tupiniquim.

Madame Valentim cuidou de mim oficialmente até meus dois anos de idade, porque, recém-casada, tinha novas obrigações domésticas. Porém, não tardou muito, lá estava ela de volta. Eu já estava um pouco mais crescido, mas era minha avó materna, vó Reginassa, que, em sua segunda infância, precisava de cuidados. E como eu tinha o privilégio de morar em frente à minha saudosa avozinha, também tirava uma casquinha de Madame Valentim. Ela alternava suas funções junto à minha avó com outra cuidadora, que pelos mais variados motivos mudava de tempos em tempos, tendo sido Madame Valentim a única a permanecer com vó Reginassa até o fim. Era sua fiel escudeira, e as duas eram praticamente o Sancho Pança e o Dom Quixote de saias.

De suas cuidadoras, sem dúvida Madame Valentim era a que minha avó achava mais divertida: quando não entrava em seu quarto pela manhã cantando alguma música do forró (tipo “talco no salão, talco no salão, pro forró ficar cheiroso e ter mais animação…”), contando sobre algum de seus rolos forrozeiros (Madame Valentim era então uma viúva. E das bem alegres…), ou falando qualquer besteira que fosse, vó Reginassa logo estranhava, num misto de preocupação e queixa: “Madame Valentim, o que houve? Você está quieta…”.

E assim ganhei mais alguns anos com Madame Valentim, bastava atravessar a rua. A casa de minha avó foi (lamentavelmente) demolida, elas se mudaram temporariamente para dois quarteirões adiante, na Aníbal de Mendonça, vizinhas de porta de minha avó paterna. O prédio que tomou o lugar da casa, projeto de meu pai (tudo em família), ficou pronto, e elas voltaram para lá. E toda essa farra familiar durou até minha adolescência, quando vó Reginassa se foi e Madame Valentim, arrimo de família, precisou se dedicar mais à sua própria avó e mãe.

E o tempo passa. E fiquei alguns anos sem ver Madame Valentim, nos falando apenas por telefone, basicamente nos aniversários, Natais e fins de ano. Mas felizmente Madame Valentim é sempre Madame Valentim, a despeito de tempos e distâncias, e a conversa invariavelmente começa desse jeito: “alô, é do bordel da Madame Valentim?”. “É sim, a gente está precisando de um viado aqui pra receber os clientes, está interessado?”. Com algumas variações no Natal: “alô, eu queria encomendar um bacalhau pra ceia…”. “Ah, aqui a gente só vende a vaca da sua mãe!”. Uma fofa, a Madame Valentim. 

Parte 2 – Simplesmente Madame Valentim

E eis que, após muitos marcas e desmarcas, concretizou-se recentemente o tão esperado reencontro com Madame Valentim. Segunda mãe que é, tinha que mais uma vez relembrar de uma letra de música que escrevi para ela em minha tenra infância, cujo conteúdo nem me lembro mais (só sei dizer que para a sorte da música popular brasileira não segui a carreira de compositor) – “guardo aquele pedaço de papel até hoje, já está todo amarelado!”.

Recordou também o dia, ou melhor, meio da madrugada, em que o pequeno Pu, ardendo em febre, gritava por ela. Seus pais, Mamãe Chance Sellers e Papai Sabe Tudo, em vão tentavam acalmá-lo, “a gente está aqui, Pu!”. “Eu não quero vocês, quero a Madame Valentim!”, do alto de minha vozinha rouca e de toda a minha sinceridade infantil. Madame Valentim, que dormia no quarto do lado de fora da casa com seu recém-marido, não teve outra solução senão se levantar e acalmar a angustiada criança (terá sido pouco depois disso que ela deixou minha casa para se dedicar exclusivamente ao marido?). Minhas irmãs, por sua vez, quando nossa mãe ralhava com elas, respondiam na mesma hora: “você não pode brigar com a gente! Você não é a Madame Valentim!” – muito antes da Super Nanny, a boa e velha psicologia infantil da chinelada parecia funcionar bem…

Seja como for, sempre que Madame Valentim relembra esses episódios, Mamãe Chance Sellers permanece em silêncio. Sim, porque Madame Valentim faz questão de recordá-los sempre na frente de minha mãe biológica. Madame Valentim é terrível. Madame Valentim é de escorpião. A primeira de minha vida. Freud explica.

E tal instinto de competição não se aplica somente a seus filhos de criação (naturais, nunca os teve – segundo ela, porque não quis que passassem pelas mesmas dificuldades que viveu na infância. Mas isso já é matéria para outra crônica…). Certa vez, estava Madame Valentim em minha casa (na entressafra de cuidar de mim e de minha avó, ela ia eventualmente até lá para ajudar em alguns assuntos domésticos), conversando com Maria de Nazaré, sua sucessora em meus cuidados. “Ai, eu tenho trauma de tapa no rosto”, comentou Madame Valentim, lembrando da vez em que, quando criança, a mãe lhe tinha batido na cara. Pouco depois, estava Madame Valentim pendurando roupa no varal quando Naza, que nem era a de Renata Sorrah, chega e pergunta “é disso que você não gosta, né?”, e lhe dá um tapa no rosto, de leve, achando que estava fazendo um gracejo. Pra quê. Madame Valentim pegou a pobre pelo colarinho, jogou contra a parede e começou a bater a cabeça dela (sim, contra a parede): “não faz isso nunca mais! Eu falei que não gostava disso! Eu vou te matar!”. Felizmente, o vizinho de casa estava por perto, pulou o muro e apartou as duas. Imagina Madame Valentim trancada em um presídio! Coitadas das detentas.

Anos depois, já cuidando de minha avó, estava Madame Valentim em sua cozinha fazendo comida. A campainha da rua dispara. Ela vai atender – era Eunice, a moça que se revezava com Madame Valentim. “O que você estava fazendo na casa do juiz?”, perguntou, sem nem dizer oi, já se jogando pra dentro de casa, e pra cima de Madame Valentim. “Como assim? Eu estou aqui cozinhando!”, se defendeu Madame Valentim, sem entender nada. “Dona Reginassa viu você entrando na casa do juiz!”, rebate a outra. Nisso, minha avó, descendo as escadas, diz que tinha visto Madame Valentim entrando na casa de um vizinho, o tal do juiz. “Você saiu e me deixou sozinha?”, perguntou ela assustada – minha avó tinha medo de ficar sozinha, e quando achou ter visto, da sacada de seu quarto, Madame Valentim fora de casa, ficou apavorada e ligou para sua outra cuidadora, que nos dias de folga de vovó, trabalhava em outra casa da vizinhança. “Dona Reginassa, por acaso você tocou a campainha dos empregados? Eu estava aqui embaixo o tempo todo fazendo o almoço! Vocês duas estão doidas!”, indignou-se Madame Valentim. À parte, com sua colega, foi um pouco mais incisiva: “e olha, Eunice, você nunca mais faz isso de gritar comigo e abrir o portão em cima de mim, que eu dou na sua cara!”. E Eunice nunca mais fez isso. Para a sorte dela.

Embora Madame Valentim fosse sua cuidadora preferida – não só era a que lhe fazia dar boas risadas como também a única em quem confiava para coisas mais sérias como a levar ao médico e para fazer exames -, minha avó era por vezes injusta com ela, a exemplo do episódio contado acima. Quando terminava de arrumar a cozinha após o almoço, Madame Valentim ia até a sala, onde estendia um lençol sobre o tapete, punha um almofadão por cima e dava um cochilo enquanto minha avó assistia à TV (e também tirava suas pestanas vespertinas). Certa vez, vó Reginassa falava ao telefone com uma amiga: “espia só [o “olha só” de vovó], ela foi pro baile [o forró] ontem e agora está aqui dormindo. Não faz nada, só dorme! Chega até a roncar!”, cochichava ela, com a mão na boca do telefone. Ao desligar, Madame Valentim, que a tudo escutara enquanto fingia dormir, se revela: “falando mal de mim, né dona Reginassa?”. Sensível, se lamentou enumerando todas as suas qualidades de fiel e zelosa escudeira, quase levando minha avozinha às lágrimas pela injusta fofoca. Praticamente o Sancho Pança e o Dom Quixote…

Epílogo

Meu reencontro com Madame Valentim se deu há pouco. Ela passou um fim de semana em casa de minha mãe, vindo ela da Baixada e eu de São Paulo, especialmente para a especial ocasião. Um par de dias em que disputei com minha irmã Ternurinha os cafunés de Madame Valentim, como nos bons e velhos tempos. Em meio a muitos rodízios de comida, para prestigiar nossa ilustre convidada. Durante esses dias, Madame Valentim contou e recontou algumas das histórias aqui contadas e outras que ainda o serão, porque a fonte de contos de Madame Valentim é inesgotável.

Em meio à sessão nostalgia, a lembrança do dia em que ela saiu de nossa casa, deixando o pequeno Pu aos cuidados de outra babá (a Naza). “Você estava com sua mãe, de costas. Não tive coragem de me despedir de você, então acenei de longe para ela, em silêncio”, (re)contou Madame Valentim – na época ela não sabia que nunca nos deixaríamos realmente.

Pós-epílogo

Não querendo terminar essa crônica familiar com pieguismos óbvios, tentei pensar em outro desfecho para ela. Sem ideias, me ocorre ligar para sua protagonista, a mais indicada para me inspirar. Ela atende. “Alô, é do bordel da Madame Valentim?”. “É sim, a gente está precisando de um viado aqui, você não quer se candidatar à vaga?”. 

Foto: goooooogle

Arquivo: novembro 2009


Papai Sabe Tudo sobre piadas

4 de abril de 2010

Recentemente li o livro Peixe Grande, que há alguns anos foi transformado em filme homônimo, estrelado pelo Johnny Depp. São memórias de infância do autor, Daniel Wallace, floreadas por toques de realismo fantástico. Todas elas recordações que ele tem de seu pai, o peixe grande do título, que contava/inventava? grandes histórias e façanhas de sua juventude.

Histórias, façanhas e piadas. Nestas últimas, Papai Sabe Tudo, o meu, também não faz feio. Inclusive, qual não foi minha alegria ao encontrar no livro uma das três grandes piadas que ele conta.

Eis ela:

São Pedro precisou dar uma saída dos portões do Paraíso, e pediu a Jesus que ficasse em seu lugar por uns minutos. Nisso, chega um senhor em humildes trajes, a quem Jesus faz a pergunta de admissão:

– O que você fez de bom na Terra para merecer entrar no reino dos céus?

– Bem, eu sou apenas um humilde carpinteiro. Quem fez coisas importantes mesmo foi meu filho…

– Seu filho? – Jesus começou a encará-lo com interesse – Continue…

– Sim, a começar pelo seu nascimento, que não foi pelas vias convencionais, ele sempre foi alguém muito especial. Desde cedo começou a fazer coisas incríveis, conquistando assim uma legião de admiradores em todo o mundo, que o amam até os dias de hoje e certamente até o fim dos tempos.

Jesus não se conteve mais:

– Papai!!! – emocionou-se, abrindo efusivamente os braços para o velho carpinteiro.

O velho o mediu com os olhos, e perguntou desconfiado:

– Pinóquio?…

Sem dúvida, uma das grandes piadas de Papai Sabe Tudo, e também do pai de Daniel Wallace. Não por acaso, uma chiste paternal, assim por dizer. Outra clássica de Papai igualmente refere-se ao relacionamento pai e filho. É a do indiozinho que não se conformava com seu nome, e foi questioná-lo junto àquele que o tinha batizado:

– Pai, porque tenho esse nome?

– Filho, aqui na aldeia é costume o pai nomear os filhos com a primeira coisa que vê ao sair da oca após o nascimento do bebê índio. Assim, quando sua mãe teve seu irmão mais velho, saí de casa e vi uma águia no céu. Por isso seu irmão chamar Águia no Céu. No nascimento da sua irmã, estava uma linda noite de luar. Então, ela ficar sendo Lua Prateada. Entendeu, Cachorro Cagando?

A terceira piada não ficou por último por ser a menos importante. Ao contrário, a deixei para o final não apenas por ser a mais ouvida de Papai ao longo de minha vida, como também por ser simplesmente a melhor de todas:

O gaguinho estava no rio com seus amigos. De repente, gaguinho começa a gritar: “HIP! HIP!”. “HURRAAAA!!!!”, responderam seus amigos, em coro. “HIP! HIP!”, repetia gaguinho. “HURRAAAA!!!!”, continuavam todos. Daí chegou um hipopótamo e comeu todo mundo.

Imagem: goooooooogle

Arquivo: novembro 2009

4x Espoleta

25 de março de 2010

Férias de julho. Meu sobrinho Espoleta, seu irmão mais velho Afilhado, sua mãe Material Girl e seu pai Cunhado Curitibano passaram alguns dias em minha casa carioca, a de Mamãe Chance Sellers.

Mas foi mesmo o pequeno Espoleta, de baixo de seus quatro aninhos, que roubou a cena, em pelo menos quatro ocasiões:

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Estávamos eu e Espoleta em nossa tradicional brincadeira que consiste em jogá-lo para o alto (segurando-o antes de ir ao chão, obviamente). Praticamente um bungee jump para o menino, que, quando meus braços já não aguentam mais e dou a brincadeira por encerrada colocando-o no chão, sempre estica seus bracinhos e, tal como um Baby Sauro, pede: “DE NOVO!”.

Desta vez, porém, ainda em meio aos arremessos para o alto, ele faz um pedido surpreendente: “agora chega!”. E todos estranham.

Coloco o pequeno Espoleta no chão, ele levanta a calça (um pijama que minha irmã colocou no pobre do menino que devia ser para uma criança de seis anos, o que lhe rendeu até o final de suas férias o inconveniente apelido, típico de adultos chatos, de calça frouxa), “a calça estava caindo”, explica, estende o braço, e….. “DE NOVO!”.

Ah, bom!

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Após aprontar mais uma, o pai de Espoleta o coloca de castigo. Genioso como a mãe, o pequeno birrento se indigna com a situação e, sentado no sofá de sua penitência, declara: “eu vou sair daqui, vou pegar o ‘vevador’ (elevador, em espoletês), vou embora e vocês nunca mais vão me ver!”.

Nos mostramos consternados com seu tão drástico anúncio, “puxa, mas você vai fugir mesmo?”, “não faz isso!”, até que o pequeno fujão, que parecia considerar algo durante nossa contestação, levanta uma questão bastante relevante à sua fuga: “e quem vai apertar o botão do ‘vevador’?”.

“Ué, você, você não vai fugir?”, sua família respondeu em coro.

“Mas eu não alcanço o botão do ‘vevador’!”, constatou frustrado o pequeno Espoleta, vendo seu espetacular plano de fuga se arruinar por causa de tão pequeno detalhe técnico.

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E o danado do menino não saía de perto da janela. “Sai de perto dessa janela, Espoleta!”, “você vai cair e vai se quebrar inteiro…” “…e vai morrer e nunca mais vai ver o papai e a mamãe”, advertia-o sua zelosa família, alguns com mais, outros com menos, psicologia infantil.

“Vou morrer nada! Eu como comida saudável!” (!!!!), afirmou com convicção aquele protótipo de gente da geração saúde.

Meu sobrinho já pode ser convidado a dar palestras sobre boa alimentação e imortalidade em universidades de nutrição (será que o Highlander come muita salada?).

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Generoso, Espoleta deu um biscoito a seu avô. “Obrigado”, agradeceu Papai Sabe Tudo. “Obrigada nada, é obrigaDO!”, tirou uma onda de que estava corrigindo seu avô, aquele fedelho.

“Mas eu falei obrigaDO, Espoleta!”, defendeu-se meu pai. “Falou nada! Eu não minto…”, retrucava e insistia aquele insolente fedelho, para arrematar em seguida: “…só nas férias!”.

Imagem: gooooooooogle

Arquivo: julho 2009

Batizado na Família TraPu ou Pequeno Mr. Sunshine

2 de março de 2010

Era uma vez uma família que iria se reunir para o batizado do mais novo de seus membros. Nada mais natural, se não fosse pelo fato de que tal encontro se daria a algumas centenas de quilômetros (para alguns deles mais, para outros menos) de onde vivem, resultando em uma caravana rumo ao local em questão. Tal episódio tampouco mereceria notoriedade, se a parentela em questão não se tratasse da Família TraPu. E com o agravante deste encontro durar quatro dias.

Os personagens desta tragicomé…digo, epopeia familiar, eram:

Este que escreve

Mamãe Chance Sellers (qualquer semelhança de seu nome com o personagem Chance, de Peter Sellers em Muito Além do Jardim, é mera homenagem)

Papai Sabe Tudo

Material Girl (irmã mais velha de Pu)

Cunhado Curitibano (marido de Material Girl)

Afilhado (de Pu, primogênito de Material Girl e Cunhado Curitibano)

Espoleta (o batizando, irmão caçula de Afilhado)

Tio Ilustríssimo (irmão de Papai Sabe Tudo e membro real da família plebeia)

Raspa de Tacho (filho temporão – não, nenhuma relação com o ministro da Saúde – de Papai Sabe Tudo, fruto de seu segundo enlace matrimonial, com Madrasta)

O contexto em que se encontravam estas pessoas era o seguinte:

Mamãe Chance Sellers estava enfurecida com seu ex-marido Papai Sabe Tudo, por este ter-lhe negado carona em seu carro no trajeto de mais de 800 km que separa o Rio de Janeiro de Curitiba e tê-la feito cumprir sozinha, e de ônibus, esta rota que leva meio dia de viagem para ser completada. Motivo: medo (infundado, supõe-se…) de uma censura – ou quem sabe uma retaliação – de Madrasta, que teve de ficar no Rio por motivos de força maior.

Cheguei a intervir neste caso, ralhando com Papai Sabe Tudo ao telefone quando este me contou do “absurdo” do pedido, se achando cheio de razão por ter dito não e considerando tudo muito engraçado, o debochado (Mamãe Chance Sellers contou que dias depois Papai havia lhe telefonado querendo falar com ela – arrependido e disposto a se redimir, supõe-se – mas que ela, orgulhosa, não quis atender, decidida a ir sola mesmo).

Material Girl vivia ainda o luto por seu primogênito de quatro patas, que partira para o céu dos cachorrinhos dias antes. Após os festejos do feriado, ela também iria para o Rio, com o propósito de lançar os caninos restos mortais ao mar (tal e qual Carlota Joaquina, ela não quer que as cinzas de seu bichinho se misture ao pó de Curitiba, cidade que ela renega e não vê a hora de deixar – após bater bem os sapatos).

Tio Ilustríssimo havia recém-terminado com seu par. Já Ternurinha, a irmã do meio de Pu e Material Girl, não tomou parte nesta jornada por temer pela saúde de Julie Joy, manquetola e cegueta, caso fosse deixada em um canil (a cachorrinha, não minha irmã!) durante o período.

E foi assim, em meio a tais inquietações e anseios, que a sui generis Família TraPu teve que superar suas divergências e conviver pacificamente em prol de um bem comum, estrelando este road movie da vida como ela é, que fez de Espoleta, a figura central desta história, uma versão tupiniquim da pequena Miss Sunshine.

A seguir, as melhores cenas desta insólita saga:

A chegada

Parti de São Paulo na noite de quarta, chegando à capital paranaense na manhã seguinte. Fui para a casa de Material Girl, que hospedava Mamãe Chance Sellers, que, assim como Papai Sabe Tudo, havia chegado na véspera – cada qual em seu meio de transporte.

Após as saudações iniciais, fiquei sabendo o motivo da longa espera por uma resposta ao interfone: embora Mamãe Chance Sellers o escutasse tocar insistentemente, não fazia nada a respeito por acreditar que se tratasse do despertador que acordava o restante da casa. “Cheguei na sala e ela estava esparramada no sofá, e o interfone tocando”, entregou Material G.

Minutos depois, chegaram Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho. Como o local de minha hospedagem ainda não havia sido definido, Papai me perguntou se eu ficaria com eles no hotel, ao mesmo tempo em que Material Girl me convidava a ficar em sua casa. Optei pelo ambiente família, ficaria com meus sobrinhos, enfrentando minha alergia a crianças.

“Mas sua mãe já não está perturbando muito, Material G.?”, perguntou meu debochado progenitor, com o único propósito de provocar sua ex-mulher logo pela manhã. Quando ela, indignada, já esboçava seu protesto, eu me antecipei e disse a Papai: “Mamãe Chance Sellers mandou você #!*&#!*”, sendo censurado por aquela a quem eu defendia: “Ai, Pu, que horror!”.

Era a hora da distribuição dos presentes que eu trouxera de minhas férias no nordeste – leia-se camisetas de Porto de Galinhas. Dei a Papai Sabe Tudo uma com a estampa da bandeira símbolo do mergulho, deixando-o feliz com a lembrança e com a primeira oportunidade do dia, e da viagem, de demonstrar toda a sua sapiência: “Vocês sabem o que significa este símbolo?”, nos desafiou. “Sabemos”, respondemos em coro, e lhe tiramos o gostinho de nos ensinar mais essa.

A esta altura, Cunhado Curitibano já havia despertado, e tomamos todos juntos o café da manhã. Foi em meio a torradas e queijos que Material Girl ofereceu à Mamãe Chance Sellers um dos forninhos elétricos que Cunhado tinha ganhado como brinde em sua firma – havia umas dez caixas deles empilhadas no quarto de empregada – por apenas R$ 100,00, preço de filha para mãe (“nas Lojas Americanas está quase R$ 200,00!”) que, no entanto, não se interessou pela promoção. Entre um gole de leite e outro, fiquei sabendo que Mamãe Chance Sellers havia sido uma das consumidoras do genérico de Tropa de elite, mas que ao chegar em casa, se viu diante de um show de Bruno e Marrone. E que ela estava impressionada como Curitiba parecia com San Francisco. “Mas você conhece San Francisco?”. “Não”. Mamãe Chance Sellers é como eu, vê muito filme (“she likes to watch”). E Papai Sabe Tudo ainda encontrou espaço para tecer seus comentários a respeito da embalagem do french vanilla que Material G. usa no café: “parece sapólio!” – já a criatividade de Papai, eu não consigo superar…

Na Ilha do Mel

Estômago forrado, era hora de desbravarmos a Ilha do Mel. Desta primeira etapa do roteiro family hollyday não participariam meu cunhado e meus sobrinhos (e Tio Ilustríssimo, que estava a caminho), que iriam para o trabalho e para a escola, afinal ainda era véspera do feriado. Assim seguiram para o litoral apenas aqueles que puderam prolongar a folga e aquelas que vivem férias eternas.

(No carro, a queda da ficha: eu achava que não viveria mais para ver aquele dia, a Família TraPu reunida novamente, e viajando junta! Só faltava Ternurinha. E havia Raspa de Tacho de quebra. Bom, mas tudo bem, vai…)

Já chegando ao porto, surgia a primeira piada interna do feriado: quando nos julgávamos perdidos, devido à infindável estrada em linha reta que levava aos barcos, exclamei ôôôxe…, explicando a serventia da interjeição no nordeste, empregada sempre que se fica impressionado com algo, ou quando simplesmente não se sabe de nada a respeito. Material G. contou então que Cunhado Curitibano vem ultimamente utilizando o aff….(corruptela de Ave Maria, que de um Ave passou para um mero sopro, afffff….). Ela logo explicou: “ele pegou essa mania do chefe dele”. Cunhado Curitibano é um ótimo agrega….digo, cunhado, mas tem esta peculiaridade: ele tem algo do Zelig, aquele personagem do Woody Allen, que se torna igual à pessoa de que se aproxima. Afff….

Na saída do barco, tentei quebrar o gelo entre Mamãe Chance Sellers e Papai Sabe Tudo, fingindo que iria dar a mão para ajudá-la, mas deixando Papai fazer isso. Após uma prainha, era hora de encher a barriga em família novamente. E também para surgir a segunda piada interna: no barzinho da praia, para tudo o que perguntávamos ao garçom obtínhamos a mesma resposta: “como é o x-tudo de vocês?”. “Bem, isso depende da região. Cada uma faz de um jeito, aqui é assim, assim, assim…”. “E o x-salada?”. “Em cada região é de um jeito. Aqui nós fazemos tal, tal e tal…”. Após experimentarmos a culinária sanduichística típica da região, voltamos para Curitiba. Era hora de rever as criancinhas…

Espoleta

A despeito de minha pedoalergia, em relação a meus sobrinhos tenho uma resistência maior, e consigo encarar bem até quatro dias consecutivos de convívio, sem antibióticos. Afilhado já está com dez anos, e não causa mais transtornos (pelo menos para mim), ocupado que está com seu MP3. Quanto a Espoleta, aquela miniatura de gente de apenas três aninhos de idade…

O mais novo membro da família TraPu é coisinha linda de Deus. A última vez que eu o vira ele ainda engatinhava e emitia grunhidos. Hoje ele já anda, corre, joga bola pela casa, grita com toda a força de seus pequenos pulmões, cospe, morde e faz “fonfon” (brincadeira que consiste em apertar, até o limite da resistência humana, a bochecha de suas pobres vítimas – para o caso de Papai Sabe Tudo ele fez uma pequena adaptação, que é tentar arrancar sua barba da cara). Mais fofo que o tio.

Nos trilhos para Morretes

O programa de sexta-feira foi andar de trenzinho. Não, não era um brinquedinho de Espoleta, mas sim o trem que desce a Serra do Mar até Morretes, cidade histórica do litoral paranaense. Na partida, o guia pergunta ao Tio Ilustríssimo, que estava sozinho em um banco: “onde está seu companheiro?”, referindo-se ao espaço vago ao seu lado. “Eu não tenho companheiro, moço!”, exclamou, virando-se a seguir para nós, zombeteiro: “era só o que faltava!”.

Durante o pitoresco trajeto, Mamãe Chance Sellers pôde mais uma vez dar asas à imaginação. Sobre a balbúrdia que a turma da farofa criava na parte de trás do vagão cada vez que o trem entrava em um túnel, Mamãe considerou: “parece aqueles trens cheios de torcedores que vão para o Maracanã…”. “Você já esteve em um trem para o Maracanã?”. “Não, mas deve ser assim” (se aventurando por muito além do Jardim de Alah, Mamãe Chance Sellers estava descobrindo um mundo todo novo).

Carteado

À noite retomamos uma milenar tradição de família, o biriba (ou buraco, para os íntimos). Jogaríamos eu e Ilustríssimo contra Material G. e Cunhado. Antes de começarmos, Ilustríssimo, para nossa surpresa, mostrou-se contrariado porque jogaríamos valendo apenas trinca de ases, forma que toda a família sempre jogou, desde os mais remotos tempos.

Papai Sabe Tudo, que participaria da partida como observador (outro costume familiar acerca da jogatina, segundo o qual para cada partida há sempre pelo menos um espectador, geralmente emitindo palpites), logo esclareceu o irmão: “o buraco valendo apenas trinca de ases ou trinca de qualquer carta varia de acordo com a região”.

Após uma emocionante partida, em que a ala cor-de-rosa da família mostrou sua supremacia, Papai Sabe Tudo, já no hall do elevador, pergunta a Espoleta: “quer ir com o vovô?”, oferecendo-lhe o colo. “Péta (aperta, em espoletês)! Tchau!”, ele responde, apontando o botão do elevador e acenando em seguida.

No tailandês

Curitiba guarda uma boa, ou melhor, deliciosa, semelhança com São Paulo: comida. Não, não me refiro à atração turístico-gastronômica – que, no entanto, só tem fama, e a comida que é bom não tem nada de especial, sendo válido ir uma vez apenas para conhecer e poder dizer depois – que é o bairro de restaurantes Santa Felicidade (sendo o engodo culinário equivalente de São Paulo o Famiglia Mancini). Refiro-me a lugares como o Barolo, onde jantamos em minha primeira noite um conchiglione recheado de camarão com molho de queijo e camarão de comer exclamando mamma mia!…

No sábado, após um dia de passeio pelo Parque Estadual de Vila Velha, foi a vez de experimentarmos a comida oriental local. Fomos ao Asian Spice, um tailandês/mongol que faz parte de um, como irei dizer, bem-bolado de mais dois outros restaurantes contíguos, que se interligam por dentro e que servem comida indiana e japonesa. De comer meditando, mas a grande atração da noite foi nosso vizinho de mesa.

Quando chegamos à mesa que havíamos reservado, Papai Sabe Tudo notou que ela ficava bem debaixo do ar-condicionado, e então, num lapso, fez a seguinte idiótica pergunta: “será que esse ar desce para baixo ou para os lados?”. “Desce pra cima! HEHEHEHEHEHEHE!!!!!!”, respondeu, numa risada que era um misto do Rabugento com a menina Reagan (de O exorcista), a figura sentada à mesa ao lado.

Tchutcho (susto, em espoletês)! Nos sentamos, o ar-condicionado não jogava o ar para baixo, como Papai Sabe Tudo quis dizer. E eis que Reagan Rabugento desatou a conversar com ele. Puxou papo falando do restaurante, que era a primeira vez que jantava lá e que estava gostando muito, isso porque era “mais viajado que leão de circo” (!!!), e tal. Papai tem disso, as crianças e os bêbados o adoram.

Lá pelas tantas nosso sinistro vizinho desce, deixando sua acompanhante sozinha por um tempo. Até que finalmente ele volta, rindo (“HEHEHEHEHEHE!!!!!!!!!!!!”) porque ela havia ligado pra ele chamando-o para voltar à mesa: “eu estava conversando com os indianos!”, ele se justificou. “Você sai e me deixa sozinha! Tive que te ligar!”, retrucou ela, de pilequinho.

Quando eles se levantaram para ir embora, o doido disse pra doida: “dá tchau ali pros nossos amigos!”. E a dupla dinâmica acenou efusivamente para outro casal de uma mesa do outro lado do restaurante, que havia chegado há pouco e com quem em momento algum eles haviam interagido (os pobres, discretíssimos e elegantes, olharam sem entender lhunfas)! Quando passaram por nossa mesa, para despedirem-se de nós, a namorada de Reagan Rabugento nos desejou felicidades e um “batizado lindo” (pelo visto Papai narrou a eles as páginas de nossas vidas), que essa era “uma ocasião muito feliz”! Como diz minha amiga Mary Black, tem coisa mais linda que bêbado?

Na hora de pagar a conta, quando Papai Sabe Tudo queria saber que parte lhe cabia, veio a pureza da resposta das crianças: “ué, mas o Tio Ilustríssimo disse ontem que pagaria o de todo mundo”, bem lembrou meu bem treinado Afilhado.

O batizado

Domingo. Era chegado enfim o dia da razão de estarmos todos longe de casa, ali reunidos. O dia a partir do qual Espoleta não cairia em tentação, não pecaria, seguiria os mandamentos do Senhor, enfim, se tornaria um santo. Por outro lado, enquanto a inocente criancinha era iniciada na hipocri….digo, fé católica, seu avô não demonstrava nenhum temor a Deus: não tirava os olhos dos peitos siliconados de Turca Boa, madrinha de Espoleta.

Saímos da igreja para o brunch de confraternização no Coeur Douce, que foi uma verdadeira orgia gastronômica, onde tive a oportunidade de praticar, com louvor, um dos três de meus pecados capitais favoritos: a gula.

Epílogo

Após quatro dias em que anos a fio foram passados a limpo, por meio de recordações e memórias trazidas à tona em nostálgicas conversas, tendo o futuro também lugar garantido nas discussões, o catártico feriadão familiar chegava ao fim, e a família TraPu começava a se dispersar.

Eu era o primeiro a partir, em uma chuvosa noite de domingo. Tio Ilustríssimo pegaria o primeiro voo do dia seguinte. Papai Sabe Tudo e Raspa de Tacho colocariam o pé na estrada logo cedo, levando de carona Material Girl e a urna funerária contendo as cinzas de meu sobrinho primogênito canino para serem jogadas ao mar de Ipanema. Mamãe Chance Sellers passaria o dia seguinte em Curitiba, à espera do horário do ônibus, que só sairia à noite. Por que Material G., que se hospedaria em casa de sua mãe no Rio, não faria a gentileza de ir com ela fazendo-lhe companhia? “Você paga a passagem?”, responde ela com outra pergunta, sem o menor pudor.

Durante a derradeira partida de buraco, o pandemônio era geral. Tio Ilustríssimo chegou a subornar Afilhado com uma nota de R$ 50,00 para que ele tomasse conta de seu irmão mais novo (leia-se mantê-lo longe da mesa de jogo). Eu já imaginava como seria um encontro entre Espoleta e Xavier, o cão mais inteligente do mundo, visualizando um confronto do tipo Alien x Predador: quem cansaria primeiro o outro? Qual pilha acabaria primeiro? Foi quando lembrei, num suspiro, que Xavier, o cão mais hiperativo do mundo, tem a vantagem de ao menos ser silencioso…

E era com aperto no coração que me lembrava também de que aquele era o último dia de minhas tão almejadas férias. Depois desses quatro dias, eu precisava de pelo menos uma semana a mais. Afff…..

No entanto, quando Mamãe Chance Sellers, Material Girl, Afilhado e Espoleta foram me levar ao elevador, e sua porta fechou como uma cortina a cena dos quatro acenando tchau (praticamente os Teletubbies, só faltava o figurino), minha garganta deu um nó.

Às vezes eu sou um fofo.

Foto: goooooogle

Arquivo: outubro 2007

Muito além do Jardim de Alah

8 de fevereiro de 2010

 

 

Minha mãe não é rainha, mas tem seu reino particular. Este, porém, não abriga suntuosos castelos em vastos e verdes vales, em remotas e longínquas terras.

O reino de minha mãe é um território de nobres e plebeus, mundialmente famoso e democrático, localizado no aprazível balneário de São Sebastião do Rio de Janeiro, e delimitado pelo morro do Cantagalo e o Jardim de Alah.

Ipanema é o reino de minha mãe, onde ela nasceu, se criou, teve seus filhos e os criou. E que, há muitos anos, não deixa. No máximo, avança umas quadras do Jardim de Alah e vai bordejar pelo Shopping Leblon ou alugar um filme na Blockbuster logo em frente.

Quando há epidemia de dengue na cidade, ela não se alarma: “é em Jacarepaguá…”. E, como já cantou o Jota Quest, “Jacarepaguá é longe pra caramba”! Pra minha mãe então, nem se fala, é em outro planeta. Gripe suína? México? Argentina? Uma galáxia a anos-luz de distância!

Eis que outro dia entreouvi o seguinte diálogo dela com sua empregada:

– Nossa, como está quente! Imagina em Bangu, quando aqui está fazendo um tempo normal, lá já está quente. Quando aqui está quente, Bangu vira um forno!, sentenciava minha mãe.

A menina, mal conseguindo disfarçar a surpresa que lhe causava afirmação tão contundente, quis confirmar o que seus ouvidos custavam a crer:

– A senhora conhece Bangu?!

– Não, mas dizem que lá é quentíssimo.

Foto: gooooogle

Arquivo: julho 2009